LGBTQI+
arco íris

Ovelhas de arco-íris

Se formos fazer um apanhado das terminologias e obrigações civis perante ao que se denomina como família percebemos a necessidade de se preservar a autoestima de seus componentes, bem como estabelecer uma relação solidária unida por laços afetivos. Mas vamos falar com mais verdade sobre amor e afeto? Ou sobre o que a ausência destes sentimentos pode causar na vida de um elegebetê?

Por Michelle MKO

Eu não podia, na série de matérias e artes destinadas ao Orgulho LGBTQIA, deixar de abordar uma temática tão delicada e ao mesmo tempo tão pungente: família. No meu texto autobiográfico Lágrimas de arco-íris (clique aqui) eu relatei um pouco do impacto que minha saída do armário causou na minha vida e na vida da minha família. Na matéria Sangue e purpurina (clique aqui) eu resgato a historicidade do movimento do orgulho LGBTQIA e dou dicas de filmes, documentários e séries que abordam a temática e perpassam, transversalmente, o tema família. Não são raros os relatos de abandono e agressões quando algum elegebetê se declara ou é descoberto por algum familiar. Infelizmente, poucos são os casos de acolhimento e amor incondicional das famílias em situações de quebra de paradigma da cis-heteronormatividade. Hoje, quero puxar a cadeira e te convidar para sentar à mesa comigo e conversar sobre família e amor. Vamos abrir o álbum de fotografias da história?

família
Arte por Michelle MKO

O conceito de família é ponto de discussão há muito tempo. Isto porque as famílias têm passado, naturalmente, por transformações, bem como a ótica jurídica e social sobre ela. Na Grécia antiga, o poder familiar era concentrado na figura masculina, do progenitor como tendo absoluto poder sobre a esposa e sua prole, o chamado poder pater. Digo absoluto porque os homens tinham inclusive o direito de determinar se a esposa e os filhos iriam viver ou morrer em qualquer época da vida. Às mulheres cabiam apenas as obrigações de casa. À medida que o Estado se fortalece, este poder foi migrando para ele, mas muitos poderes ainda eram atribuídos aos homens, deixando às mulheres poucos direitos sobre si mesmas e sobre seus filhos. E muitas foram as lutas para que as mulheres conquistassem um mínimo de autonomia nesta relação. No Brasil, a Constituição Federal de 1934 e as subsequentes atribuíram ao Estado o poder de mediar e garantir a indissolubilidade do casamento. A Constituição de 1988 trouxe duas alterações significativas em sua percepção de família quando não restringiu o conceito do termo à obrigatoriedade de casamento e quando adota a possibilidade de dissolução do casamento através do divórcio após três anos de prévia separação judicial. Em seu art. 266, a CF dispõe que deverão ser preservadas a intimidade, a reputação e a autoestima dos seus componentes. Mas não precisamos recuar muito no tempo para trazer reflexões sobre o quão complexo é o assunto família quando, até hoje, se discute o direito de aborto no Brasil, por exemplo. O Código Civil brasileiro em 2002 mantém a obrigatoriedade de fidelidade recíproca embasada na estrutura social da monogamia adotada pelo Brasil. Sim, o adultério não é mais considerado uma infração penal, mas os efeitos decorrentes deste ato são considerados na análise de um crime cometido supostamente pela honra. Alerta máximo aos que são cheios de contatinhos.

Em 2015 a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que criou o Estatuto da Família e considerou família como “a união entre homem e mulher por meio de casamento ou união estável, ou a comunidade formada por qualquer um dos pais juntos com os filhos”. A polêmica foi criada. A agência de publicidade NBS e o Grande Dicionário Houaiss tiveram uma iniciativa pioneira de elaborar o verbete de dicionário família a partir da interação e da sugestão dos internautas, já que o conceito até então estabelecido pelo Estatuto da Família excluía boa parte dos modelos familiares existentes em nossa sociedade. Com o mote #todasasfamílias a campanha promoveu comoção e participação popular. O resultado foi o estabelecimento do seguinte conceito que passou a ser dicionarizado: “Núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma relação solidária”.

FAMÍLIA
Arte por Michelle MKO

Se formos fazer um apanhado das terminologias e obrigações civis perante ao que se denomina como família percebemos a necessidade de se preservar a autoestima de seus componentes, bem como estabelecer uma relação solidária unida por laços afetivos. Mas vamos falar com mais verdade sobre amor e afeto? Ou sobre o que a ausência destes sentimentos pode causar na vida de um elegebetê?

Família x saúde mental

Você já ouviu falar em Minority Stress? É uma teoria que observa o nível de estresse entre pessoas pertencentes a grupos de minorias. Entre pessoas LGBTQIA há maior ocorrência de pensamentos suicidas, chegando a uma proporção de três para cada um em comparação com pessoas cis ou héteros. Efetivamente a tentativa de auto-extermínio entre elegebetês é de cinco vezes mais. Isso porque o sentimento de discriminação, a dor do estigma e a violência são fatores presentes na realidade desta população, infelizmente. A saúde física e psíquica deste grupo é fator de atenção entre profissionais e deveria também ser das famílias.

Nos Estados Unidos o suicídio entre jovens de 10 e 24 é a segunda maior causa de morte. Pense: crianças de dez anos e jovens de até vinte e quatro anos tirando a própria vida por não se sentirem amados e acolhidos! Um estudo feito pelo The Trevor Project, maior organização do mundo relacionada à prevenção de suicídio na população LGBTQIA, mostrou que, para um jovem elegebetê, a existência de um adulto próximo que o aceitasse e o acolhesse diminuiria em 40% a chance de uma tentativa de suicídio. Percebe a importância de amar e acolher a ovelha colorida da família? E de exercer verdadeiramente o amor com um laço afetivo e não uma corda opressora?

Amar pressupõe entrega e abdicação de projeções pessoais sobre os outros. Sim… muitos pais tentam projetar nos filhos o que eles mesmos não conseguiram fazer ou que idealizaram e tentam lhes impôr seus projetos. E quando os filhos se mostram diferentes do padrão cis-heteronormativo costumam demovê-los desta identidade como se fosse uma escolha banal. Ninguém em sã consciência opta pelo mais difícil da vida. E arcar com a afirmação de orientação e identidade sexual é um ato de extrema coragem e paradoxalmente de extrema vulnerabilidade, já que vivemos em uma sociedade que discrimina o que foge de uma suposta e equivocada padronização. Muitos pais também se percebem elegebetês e nem sempre os filhos também acolhem bem este despertar, ou seja, não é a idade ou a geração que determina o acolhimento e o respeito às individualidades.

Quantos retratos foram rasgados e quantas fotos apagadas da galeria virtual por falta de amor? Por ausência de acolhimento? Que tal fazer valer na íntegra o conceito de família e manter entre si uma rede de amor e solidariedade? Bora amar, pessoal! Tenha orgulho de ter em seu núcleo familiar uma ovelha de arco-íris!

OVELHA
Arte por Michelle MKO

 

Foto

Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

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