Crônicas
celeste

Carta (à) Celeste

Um ano. 12 meses corridos. Passou seu aniversário. Passou o Natal. Passou meu aniversário e o da Anna Clara. Passou o dia das mães. Passaram-se muitas lágrimas. E ainda passam.

Por Michelle MKO

Um ano. 12 meses corridos. Passou seu aniversário. Passou o Natal. Passou meu aniversário e o da Anna Clara. Passou o dia das mães. Passaram-se muitas lágrimas. E ainda passam. Muitas lições ressignificadas. Muitas memórias (res)guardadas. Ontem e mil anos se confundem. Há dias em que as lembranças vêm com todo o combo de sensações: afloram cheiros, texturas, sons, sabores e imagens. Há outros em que nem a imagem se redesenha na retina. E a ciranda das emoções do luto gira, gira, o coração fica tonto e a saudade fica.

Sensação de que nasci de novo. Que cresci décadas neste curto espaço de tempo. Atravessei mares bravios, desertos extensos e paisagens insólitas. Enchi meus pés de calos e minhas memórias de recortes. Teci com linhas multicoloridas lembranças agradáveis e desfiei dores cinzas no tecido do passado restaurando bordados de resiliência e compreensão. O céu do seu nome nunca mais teve a mesma cor. Mas ganhou tons bonitos também, sobretudo pelo atravessamento da luz nas lágrimas formando arco-íris.

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Arte: Michelle MKO

Tropecei nos degraus das minhas dores, escalei montanhas de tristezas, mergulhei em águas salgadas de angústia, sentei no topo das minhas certezas e revi minha vida. Senti o vento de novos tempos no rosto, o calor ameno do sol na pele e as gotas delicadas de chuva na minha alma. Cultivei novos afetos, ressignifiquei outros e abandonei entraves. Não consegui tirar suas chaves do meu chaveiro e nem retornar ao lar que foi seu ninho. Sua rua ainda me comove e não fui sequer uma vez na sua lápide. Me priorizei como nunca e me distanciei de abusos e abusadores.

Minha voz ecoou por horas na terapia e meus escritos me salvaram muitas vezes. Muitos versos e poesias, pouca rima e escrita livre. Muitos desabafos em prosa transitando entre mil gêneros. Meu colchão se afundou e moldou meu corpo, mas meus pés também chegaram em lugares novos. Os lutos se pluralizaram, mas as lutas se fortaleceram. As bandeiras me agasalharam e meus gatos se multiplicaram. Minha maternidade seguiu solo e sua partida levou meu colo. A rua não é a mais a mesma nem o vale se faz mais belo. Os livros encaixotados, as roupas no cabide e o tênis azul no pé. O creme de baunilha perto do fim, os sabonetes nas gavetas, os panos de prato esgarçados.

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Arte: Michelle MKO

Os pijamas dobrados no fundo do armário e as fotos numa pasta no drive. As noites insones com as horas que não voltam mais. Os pratos sem seu deguste e meus pés sem seus carinhos. As mágoas da criança ferida e o consolo da adulta consciente. As sacolas e o Evangelho, a Prece de Cáritas adormecida. O álbum de casamento digitalizado e segredos descortinados. As músicas deslizando chorosas pelo labirinto de memórias e as conquistas sem seus aplausos.

O reflexo no espelho te redesenha e algumas falas me trazem você. A ancestralidade calça as botas que protegem, mas que também deslizam. Os aniversários de amigos e familiares me trazem sua memória que ficou na nossa. Sinto tanto a sua falta… mas do rastejo ao voo sigo e alço memórias celestes.

Obrigada, mãe!

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Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

COMENTÁRIOS

  • Michelle MKO

    Obrigada, Jefferson! A poesia como pétala de acolhimento.

  • Michelle MKO

    Obrigada, Lê! O alento de amigos faz o percurso mais leve.

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