A dor de um conflito

Alguns conflitos causam uma sensação de um corpo frágil arrastado em cacos de vidro e brasas de uma fogueira ardente. Mesmo após o soerguimento, o ardor segue pulsando e sangrando. À medida que o corpo cicatriza as feridas, a alma também precisa tratar das chagas da memória. Porque algumas palavras e algumas atitudes atravessam uma existência com uma agudeza maior do que as causadas pelos objetos perfurocortantes ou incandescentes. E se faz necessário investir nessa cura.

Porque o corpo é sábio e ágil em sua recuperação, mas a alma precisa abrir mão do ressentimento para produzir o perdão, único unguento que consegue aliviar a dor da alma após um conflito. Perdoar é uma ação consciente, resiliente, às vezes morosa e certamente difícil. O eco das palavras duras proferidas em uma discussão precisa ser diluído até ser esvaziado de sentido da dor porque é doloroso reviver o momento do ataque, isso traz as mesmas sensações da hora da violência. E o perdão, antes de beneficiar a quem agrediu, beneficia a quem foi maculado porque o perdão liberta. Ninguém tem poder sobre o que o outro pensa, sente, fala, enxerga e interpreta.

Cada um vê o outro conforme sua lente, seu horizonte cognitivo e emocional. E quanto mais limitada e endurecida for uma pessoa, menor será seu espectro de alcance do outro. É como olhar um ambiente por um buraco na fechadura. A visão fica limitada e circunscrita. E trabalhar o perdão possibilita ampliar a visão para além deste pequeno buraco na porta porque transcende a compreensão do outro. Os sábios dizem que o que é dito sobre uma pessoa não importa. Que quem se conhece verdadeiramente não precisa da validação do outro. Este é um nível de consciência e evolução que precisa de um percurso a ser percorrido ao longo da existência. Porque não é fácil ignorar ataques e violências de qualquer natureza.

Os traumas criam camadas no corpo e na alma que só podem ser dissolvidos com um trabalho intenso de autocompaixão, autocuidado e autoamor a partir do investimento no perdão. E este investimento não é linear e nem constante. Há dias mais possíveis de lidar com isso, há dias em que a dor fala mais alto. No entanto, é importante ter em mente que é preciso seguir um dia de cada vez. Que as emoções virão e precisam ser acolhidas para serem enxergadas e devidamente tratadas.

Dor, mágoa, ressentimento, frustração, decepção são sensações e sentimentos que se constroem a partir da expectativa que se cria em relação ao outro e ao papel que este outro tem na relação. E expectativas não são sábias. Porque partem de quem as cria, não de quem é visado por ela. É preciso acolher as emoções, olhar nos olhos dela e agradecer pela presença delas neste recorte específico da existência.

Respirar e esperar que as placas tectônicas das emoções se rearranjem em uma nova configuração de mapa existencial. Papéis sociais são papéis frágeis e nem sempre os que o executam o fazem como se espera. Porque espera vem da expectativa, lembra? Respirar, lamber feridas, tratar as dores e cultivar o perdão para conseguir um mínimo de paz após esta dura guerra travada dentro do próprio território emocional. E torcer para que o outro também consiga, mas ciente de que o outro conseguir ou não depende dele, apenas dele.

Poder só existe sobre si mesmo. E com esforço, luta, persistência e muita consciência.

Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.