LGBTQI+
sexualidade

Lágrimas de arco-íris

Lidar com questões da sexualidade é um desafio para todo mundo. São muitos os tabus que permeiam o assunto e a educação sexual não costuma ser trabalhada adequadamente pelas escolas e pelas famílias. Os afetos, então, como são mal compreendidos e elaborados…

Por Michelle MKO

Eu me lembro que bem criança eu queria ser menino. Morria de vontade de ter um pênis, de fazer xixi em pé e de ficar sem camisa. Usar roupas femininas era uma tortura para mim. Eu não gostava de bonecas e preferia brinquedos e brincadeiras ditas de meninos. Aos cinco anos de idade me vi apaixonada pela atriz Marieta Severo em um papel desempenhado por ela na novela Vereda Tropical. A personagem, Catarina, era uma mulher austera, andava a cavalo e eu era apaixonada por cavalos, louca para cavalgar – esse, aliás, é um dos meus sonhos não realizados, acreditam? Uma vizinha da minha casa sempre que ia nos visitar se sentava no sofá e eu me sentava aos seus pés e ficava acariciando suas pernas lisinhas e cheirosas por muito tempo. Eu não sabia, mas ali eu já começava a desenvolver minha sexualidade e meu desejo pelas mulheres.

Fui crescendo e na adolescência me vi apaixonada por uma professora de Português. Sim. Aos catorze anos eu a chamei para conversar e perguntei a ela o que era estar apaixonada. Ela, didaticamente me explicou e quando terminou eu soltei: pois é isso tudo que eu sinto por você e muito mais. Eu sonho acordada com você e não há uma só música que não me faça pensar em você. Evidentemente ela se assustou e me disse que eu estava confusa, que não era nada disso. Eu respeitei o posicionamento dela, mas fiquei frustrada pela invalidação dos meus sentimentos e desejos. Claro que hoje também entendo que havia em jogo ali uma relação profissional e uma disparidade de idade. Enfim. Beijava uns meninos, mas defendia abertamente os GLS (gays, lésbicas e simpatizantes), sim, sou dessa época, pessoal, estou com 41 anos. Aos dezesseis me apaixonei por outra professora de Português e, dessa vez, escrevi vários poemas e me declarei. Novamente o discurso de que eu estava confusa, de que não era isso e mais uma paixão minha saiu pela tangente.

sexualidade
Foto: Arquivo pessoal

Continuei ficando com meninos, mas sempre tinha uma mulher me inspirando a escrever poesias… até que aos 18 eu me declarei para uma mulher mais velha que eu e ela ficou escandalizada. Fugiu de mim por um tempo, mas um dia nos encontramos na rua, à noite, eu voltando do trabalho. Nós nos olhávamos em longos silêncios quando nos encontrávamos. Aí veio o convite para dormir na casa dela. Entre cartas, poemas e músicas eis que superamos o medo, o desconhecido e nos permitimos. Eu me senti a pessoa mais feliz e realizada do mundo! Queria gritar para o mundo todo que estava feliz e amando. Mas, ambas éramos inexperientes e ingênuas e eu resolvi contar para minha mãe o que eu achava que ela já sabia de mim. A reação da minha mãe foi terrível. Ela saiu correndo literalmente pela rua. Também, eu resolvi contar para ela na casa da então minha namorada! Sumiu o dia inteiro e à noite, quando a encontrei – ela foi para casa de uma amiga nossa-, ela me olhou com o pior olhar que alguém pode dar. Chego a sentir arrepio de me lembrar. Me disse coisas terríveis e pesadas. Eu me senti destruída naquele momento. Me senti rejeitada. Descobri da pior forma possível que o amor era condicional e me senti traída. Meus afetos foram discriminados e ali, naquele momento, ela me disse para eu nunca mais encostar nela. Eu nem sei como tive pernas para voltar para casa.

Minha namorada acabou resolvendo ir embora para o interior e eu me vi sem ela e sem minha mãe. As palavras daquela noite não me saíam da mente. Acabei me envolvendo com o pai da minha filha que sempre dava em cima de mim e eu o desestimulava falando que gostava de mulheres. Ele não me jogou pedras. Disse que me entendia, mas que eu estava confusa. Que eu era muito feminina e que eu podia estar enganada sobre o gostar de mulheres. Hoje entendo que acolhi este discurso inconscientemente para ser aceita pela minha mãe de novo. E assim namoramos, engravidei e ele quase ganhou um altar na minha casa. A gravidez foi uma das experiências mais difíceis que eu vivi naquele momento. Porque eu estava muito confusa em relação à minha sexualidade, me sentia intimamente um menino e ser mãe era algo muito de mulher, na minha concepção da época. E sempre digo para as pessoas que não é opção sexual. É orientação natural. Porque eu optei por ser hétero. E, claro, não dei conta! Vivi um casamento infeliz. Neguei quem eu era e meus desejos durante um tempo. Depois passei a ter recaídas com a namorada que fugiu. E falava para o meu marido na época. Ele entendia, mas sofria. Nós dormíamos em quartos separados e estávamos totalmente irrealizados. Enfim. Foram anos assim com essa infelicidade generalizada com direito à tentativa de suicídio minha por tanta dor emocional. Separamos, hoje ele tem outra família, somos amigos e eu vivo a minha sexualidade de cabeça erguida.

sexualidade
Michelle MKO. – Foto: Arquivo pessoal

Lidar com questões da sexualidade é um desafio para todo mundo. São muitos os tabus que permeiam o assunto e a educação sexual não costuma ser trabalhada adequadamente pelas escolas e pelas famílias. Os afetos, então, como são mal compreendidos e elaborados…

Minha mãe, anos depois, me pediu perdão. Falou que na época que eu contei ela não entendia. Achava que era perversão. Mas buscou ler e aprender mais sobre o assunto e entendeu que não era um desvio. Entendeu que nasci assim. Que era minha natureza e da qual eu não podia me declinar. Olha, (estou chorando agora), nesse dia eu me senti respeitada, acolhida e enxergada. Foi muito emocionante para mim. Porque mesmo que eu tivesse já desistido da heterossexualidade e tivesse vivendo efetivamente a minha homoafetividade, havia essa lacuna de amor e aceitação por parte de uma pessoa que era referência na minha vida. Porque eu não conseguia entender como o amor tinha vírgula. Te amo desde que… e naquele momento em que minha mãe deu este grande passo, elaborou seus sentimentos por mim e seu olhar para as manifestações de amor e de afeto, reconheceu suas limitações e me pediu perdão, eu desejei muito que todos os que, como eu, não se encaixam na heteronormatividade, possam um dia ser acolhidos em sua essência. Sejam amados sem vírgulas e sem condições. Porque é de amor que estamos falando. É amor que buscamos. É amor que vivenciamos. E amar não pode e nem deve ser uma condenação. Respeitar a afetividade de cada um é a expressão mais genuína de amor.

Foto

Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

COMENTÁRIOS

OUTROS POSTS DO MESMO AUTOR

COLUNISTAS