A Voz Delas
Consciência negra

Reconhecimento e luta

Hoje, Dia da Consciência Negra, a entrevistada da Páginas Vermelhas é uma das donas deste portal. Estou falando de Tuany Nathany Alves de Jesus, uma mulher negra, graduada e pós-graduada, bem sucedida em sua carreira profissional (e olha que ela só está começando, só tem 27 anos!!!) e que generosamente compartilhou a sua história de vida contando detalhes sobre o processo doloroso de embranquecimento para ser melhor aceita na sociedade até a descoberta da sua raça, o orgulho dela e a liberdade de ser quem é, ou seja, maravilhosa!

Por Ana Horta

Conte sobre sua trajetória até aqui. De criancinha até a fase adulta.

Bom, eu sempre estudei em escola pública, das creches ao ensino médio. Nesses ambiente há muita diversidade, mas na minha época não tinha esse debate de se aceitar, pelo contrário, todo o movimento era para embranquecer. Então, as meninas bonitas eram as meninas de pele mais clara e cabelo liso, não podia deixar o cabelo cacheado solto, pois estava ‘bagunçado’ demais. O sonho era escovar o cabelo, mesmo que levasse horas e doesse pra caramba. A valorização sempre era do branco, das características que te deixavam mais próximo desse estereótipo – totalmente irreal no Brasil. Hoje vejo até como uma forma cômica o jeito que a minha família tentava apagar a minha negritude, você não é negra é morena, mas na hora das brincadeiras me chamavam de angolana ou coisas do tipo. Na adolescência, as minhas referências, eram todas brancas: dos cantores ‘emos’ aos personagens dos livros de ficção. Nenhuma heroína fodona era negra – bom ou pelo menos as traduções não deixavam entender isso – então eu não consegui me ver, mas queria parecer com aquele povo todo. Fiquei confusa sobre aminha identidade até entrar na faculdade, o que só foi possível pelas cotas. Na faculdade, tive acesso a mais informações sobre raça e etnia, foi também quando as pessoas começaram a falar mais sobre na internet. O meu cabelo também foi fundamental, eu tinha feito uma progressiva superagressiva que acabou com o meu cabelo e coloquei megahair, porém eu tinha a mania de tirar as mexas puxando, o resultado foi um cabelo bem curto que não poderia nem ver química. Eu fiz uma transição capilar sem nem saber o que era (rs). Na faculdade, o primeiro incomodo foi a questão de gênero, ficava bem brava por ver tanto machismo – acaba que ele era mais evidente para mim, pois era o que falávamos muito. Eu tinha outras mulheres, amigas, que falavam disso, mas não era próxima de outras mulheres que falavam sobre o racismo.

“O sonho era escovar o cabelo, mesmo que levasse horas e doesse pra caramba”

 A Silvania Bahia do Olabih – gosto muito dela – falou em uma palestra que o brasileiro não gosta de falar que é racista, é feio falar que é racista, discutir sobre racismo é incomodo, com isso acabamos não dando nome as coisas e há a sensação que ela não existe e era bem isso que acontecia comigo, e pode ser que ainda ocorra. Eu só me dei conta mesmo de que tudo isso – as coações com o meu cabelo, com a minha cor, o próprio desrespeito do cameleiro que aplicou um produto muito mais forte que o necessário, esse apagamento e embraquecimento – que também presenciei no mercado de trabalho, para todas as entrevistas de emprego eu tinha de ir com o cabelo escovado. Quando ia fazer cobertura de eventos também, eu sentia que era mais bem recebida assim, além de me sentir mais bonita, afinal cresci com as pessoas falando que o cabelo cacheado é feio.

Na especialização, eu também não tinha muitas pessoas falando disso, foi só quando eu entrei mesmo para esse projeto de pesquisa que comecei a pensar sobre isso e a conversar. Ou seja, tudo bem recente. Lá não tinha muitas pessoas negras, mas eles já falavam sobre a necessidade dessa pluralidade na ciência e eu fiquei tipo, pera ‘deixa eu ver isso direito, deixa eu me entender também’. Porque apesar de ler sobre, entender que eu sou negra, nunca tinha parado para pensar em como isso ocorre, como essa violência é tão grande. Na escola a gente fala demais da Europa, fiquei um tempão lendo sobre a Rússia, ok, mas também precisamos falar da África, do nosso passado pelo olhar do povo negro e não essa visão tão europeia, do branco como salvador. Então posso dizer que eu estou em um processo, hoje em dia eu me assumo como negra – afinal eu sou negra – e tenho uma posição mais firme, o que felizmente ajudou a minha família a pensar mais antes de falar certas coisas que antes eles achavam normal – sim eles já me chamaram de macaca como uma forma carinhosa –, o que também mudou muito a forma como vejo o mundo

 

Você acredita que por ser mulher e negra, os desafios superados foram e são maiores? Se sim, de onde vem tanta força?

Então, boa parte da minha vida eu fui lida como morena, parda. As pessoas tinham, tem, a “mania” de me desassociar do povo negro, mesmo eu, claramente tendo traços negroides. Elas falavam muito, mas você nem é tão negra assim. Ou, não você não é negra, você é morena. Eu encaro isso como uma forma de preconceito, você invisibilizar a raça daquela pessoa e a embranquece, porém – infelizmente – isso me tornava mais passável. Eu não notava, noto, ações deliberadamente de me atrapalhar, me barrar, justamente por eu ser mais passável. Bom, mas isso se deve muito aos lugares que passei, por exemplo, como já disse eu venho de escolas públicas, inclusive uma escola pública de beira de favela, outro ponto eu estudei em uma faculdade privada, onde sim a maioria dos professores eram brancos, mas existia outros estudantes como eu lidos como morenos e negros, também. Para falar a verdade, eu comecei a não me ver mais em meus colegas quando eu fui fazer especialização, aí sim a maioria dos estudantes eram brancos. Então, a questão do teto de vidro, tanto falado para as mulheres, também pode ser colocado aqui, ou teto de aço. Porque a sensação que tenho, a partir da minha experiência – que pode ser apoiada por alguns dados – é de que mesmo para uma pessoa ‘morena’ há lugares pré-estabelecidos que ela pode ocupar. Por exemplo, nos estágios que eu fiz, era muito raro ver uma pessoa de poder, em um cargo de chefia, ser negro. Pode até ser mulher, mas são mulheres brancas, normalmente de classe média. No projeto de pesquisa de divulgação que eu atuei, depois de formada, eu era uma das poucas negras que estavam lá. Muitas vezes nesses ambientes, eu era a cota. Não estou entrando no mérito das cotas, até porque eu só consegui acessar esses ambientes por causa das cotas, minha família não teria dinheiro para pagar a minha faculdade que foi o que deu start em tudo. Porém, as gente precisa de ter muito mais gente nesses ambientes, de forma que as cotas não precisem mais existir.

Então quando você fala de desafios, não sinto que os meus tenham sido maiores, eu sinto que eu partir de contextos diferentes dos meus colegas que sem dúvida tiveram mais oportunidades do que eu – por exemplo, muitos sabiam inglês e eu na minha adolescência dei prioridade a aprender coisas mais técnicas –, e eu só consegui vencer essas barreiras porque eu tinha muita ajuda, normalmente de mulheres, negras, mas principalmente brancas, que enxergar a necessidade de mudança. Então, o meu primeiro estágio, foi uma mulher negra que me selecionou, depois fui indicada para outro cargo por uma mulher branca. Eu só acessei esse espaço de pesquisa por causa de pessoas brancas que me mostraram que isso existe. Na minha comunidade, as pessoas nem sabe que esse trem de divulgação científica existe, eles veem que trabalho muito e ficam felizes por mim, mas nunca leram os meus textos, porque para eles aquilo não tem ligação com a vida deles. Eu tento mostrar o contrário, mas é um trabalho de formiguinha feito a várias mãos.  

 

Hoje, dia da Consciência Negra, é possível se dizer que os movimentos negros estão mais fortes, conscientes e unidos no Brasil? É que eu tenho tido essa impressão.

Eu não participo de nenhum movimento, mas a percepção que eu tenho é que estamos mais organizados, estruturados, inclusive politicamente. O que nos torna, sem dúvida mais fortes, pois entendemos o sistema e buscamos – parafraseando Silvania Bahia – hackear e remixá-lo de forma que ele nos encaixe e os veja. Então temos pessoas muito fortes, muitas mulheres fodas que viram que o preconceito não é o normal, que somos cidadãos e que o sistema que tem de mudar para comportar as nossas necessidades, não o contrário. Eu não preciso, não deveria, ter que alisar o meu cabelo porque não tem um creme adequado para o meu cabelo, o mercado que tem de me oferecer opções, só para citar um exemplo. Então, o que eu vejo é isso uma organização desses movimentos, que entendem que nós partimos de contextos diferentes – não somos todos iguais – que estão se articulando, inclusive com pessoas brancas, pois esse movimento deve ser coletivo, para pautar as nossas necessidades.

 

Já fiz essa pergunta para você, mas vou reiterá-la aqui. Eu, pessoa branca, posso lutar pela causa negra e ser solidária a ela? Qual limite deve ter minha ação?

Como eu disse, eu acredito que esse movimento é coletivo, pois parte de uma construção social, onde a mudança só será possível se todos se unirem em prol a isso. Acredito que precisamos que todos discutam e fale sobre essas questões. Porém, concordo que há espaços – no caso o da experiência – que há sim o local de fala. Uma pessoa branca não poderá falar sobre como o racismo afeta as suas atividades básicas, não poderá falar sobre como ele mata – não só por dentro – a gente, assim como eu – uma pessoa lida como morena – também não poderei falar sobre as atrocidades que uma pessoa de cor mais retinta. Então acredito que esse debate tem de ser coletivo – só dará certo assim -, mas que deve colocar em destaque as pessoas negras, elas tem de falar por si. Os brancos já falaram demais, é preciso que eles também parem e escutem o que a gente tem a falar, para assim haver um diálogo. ///

O número de mulheres negras na universidade aumentou, devido ao programa de cotas, mas concluir a graduação continua a ser um desafio significativo. Como foi com você?

Começa que eu só consegui acessar esse espaço com a cota. A especialização que eu estou, só por causa de cotas também. Porém, é preciso dizer que eu parto de um contexto privilegiado, eu fui filha única até os meus 22 anos (ou seja já tinha completado mais da metade da minha graduação) e não precisei trabalhar na minha adolescência, como diversos amigos meus. Também não precisei trabalhar durante a faculdade, inclusive sai de um trabalho em telemarketing, que estava atrapalhando, para me concentrar nos estudos, ou seja, eu sou muito privilegiada. Porém, essa não é a realidade de todos, que trabalham de dia e estudam de noite, muitas mulheres também precisam cuidar da casa e de filhos. Eu não sou casada, não tenho filhos, meus pais nunca pediram para eu olhar a minha irmã de cinco anos, pois entendem que eu não sou mãe dela e que eu tenho os meus compromissos, mas eu – infelizmente – acabo sendo uma exceção, não a regra.

Você já passou episódios de racismo na graduação ou fora dela? Como lidou com isso?

Como eu disse a minha percepção sobre o que é racismo mudou muito, então posso ter passado por alguma situação e de fato nem ter me tocado, mas sinto que o que mais me marcou foi realmente a questão de ter de embranquecer para me sentir mais confortável em alguns ambientes de trabalho, ou até para acessá-los, como disse sempre tive de escovar o cabelo para ir nas entrevistas, também usava bases mais claras, realmente para mascarar as minhas características.   

“Sempre tive de escovar o cabelo para ir nas entrevistas, também usava bases mais claras, realmente para mascarar as minhas características”

Diversas pesquisas mostram que mulheres negras são as mais afetadas pelo desemprego no país, no seu caso, como foi esse processo?

Eu sempre tive problema com processos seletivos (rs). Sempre acertava a trave, mas não posso afirmar que foi por isso, eles nunca falaram que eu não tenho o perfil, só que o do outro estava mais dentro do perfil da empresa (rs). Enfim, isso sempre foi uma coisa complicada, os poucos que eu passei, eu fui escolhida por mulheres, inclusive um era específico para mulheres negras (o que achei muito bacana). Mas a minha carreira cresceu mesmo com as indicações. Normalmente, eu sou indicada para alguma iniciativa, de lá sou indicada para outra, mais uma vez normalmente mulheres que fazem esse movimento. Eu não sei o que seria de mim sem essa rede de mulheres fodas que eu conheci durante a minha vida (rs).

 

Parafraseando Taís Araújo, se você acordasse hoje e não tivesse mais no Brasil onde impera o racismo, machismo e homofobia, o que você faria?

Bom, eu também tomaria um porre de felicidade kkkk. Mas, falando sério, eu acho que eu já estou fazendo esse movimento. Por exemplo, nas duas últimas entrevistas de emprego que fiz, eu escolhi não escovar o cabelo, foi libertador, eu tenho comprado roupas e maquiagens de cores, inclusive para o trabalho, o que era impensável eu tinha de passar despercebida. Eu estou usando a roupa que eu quero, inclusive vou no shopping de chinelo, estou buscando fazer hoje o que eu queria fazer nesse mundo utópico, aproveitando da posição de privilegio que eu tenho sim – por ser uma mulher lida como morena e com ensino superior em uma área conhecida – para que essas coisas não sejam exceções.  

 

Tuany Nathany Alves de Jesus, mulher, negra, graduada, pós graduada e uma das donas do Portal Gama
Foto

Ana Horta

Jornalista especializada em arquitetura e decoração e pós-graduada em MKT. Há 12 anos é proprietária da Mão Dupla Comunicação, única agência em Minas especializada em arquitetura,decoração, construção civil e paisagismo. É também uma das idealizadoras do Décor Solidário, projeto social, sem fins lucrativos, que visa revitalizar instituições carentes por meio da decoração.

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