Crônicas
trauma Arte: Michelle MKO

Museu do trauma

Naquele momento eu me senti a pior pessoa do mundo. Achei que tinha estragado o dia e a viagem e só chorava e pedia desculpas.

Por Michelle MKO

Sou formada em Letras desde 2010. Mas minha paixão pela magia das palavras vem desde muito nova. Antes mesmo de aprender a escrever eu desenhava e fazia uns rabiscos abaixo como se fossem a história do meu desenho. No jardim de infância, entrei atrasada dois meses, mas aprendi a ler e a escrever primeiro que todos da sala. Logo, logo já escrevia minhas histórias e, quando cresci, minhas opções de formação eram de alguma forma ligadas à escrita: Letras, Pedagogia e Jornalismo. Na época da faculdade de Letras, houve uma excursão para o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. Por falta de dinheiro não pude ir com a turma. Fiquei com esta frustração e jurei para mim mesma que um dia iria conhecer o Museu. 

Na semana passada, fui a São Paulo participar do lançamento de uma coletânea de poesias da qual participo. Um projeto lindo e empoderado. Com 80 mulheres lésbicas ou bissexuais, cis ou trans que expressaram em versos seus amores, desejos e dores. Fui com imensa alegria junto da minha namorada que me proporcionou essa e outras oportunidades na “Terra da Garoa”. Fomos ao Museu na sexta-feira dia 6. Ao chegarmos lá, havia muitas pessoas. Isso me gerou um certo mal-estar, mas tentei administrar para conseguir, finalmente, conhecer o Museu. Aqui abro um parênteses. Estou de licença médica há um tempo por causa de depressão, ansiedade e síndrome do pânico desencadeados e intensificados após sofrer o terceiro episódio de agressão física em sala de aula. Sim. Passei por três tristes experiências de ser agredida fisicamente por alunos.

Desde então, estar em um ambiente com muitas pessoas, sobretudo jovens, me leva a crises de pânico terríveis. Uso medicamentos antidepressivos contínuos e faço terapia semanalmente, mas, ainda assim, tenho efeitos desagradáveis quando tento voltar para sala de aula ou para algum ambiente escolar. Tanto é que precisei abandonar o Mestrado por causa do desconforto de ver alunos na unidade e por ter desenvolvido dificuldade de leitura e de concentração. Bem, volto à visita do Museu da Língua Portuguesa.

MUSEU
Projeção do Museu de Língua Portuguesa. – Foto Michelle MKO

Coincidentemente, entre os dias 5 e 7 de maio, o espaço ofereceu atrações especiais em função da comemoração do dia da Língua Portuguesa. Havia muitos jovens alunos acompanhando seus professores em excursões. As falas e risadas altas e a tentativa desesperada dos professores de tentarem conter os alunos foram me fazendo ficar tensa e trêmula. Subimos de elevador e, quando paramos no terceiro andar, todos desceram. Fui no sentido oposto deles para me afastar um pouco do grupo e tentar recobrar o equilíbrio. Mas foram chegando mais turmas e quando me dei conta, estava tremendo, chorando, com dor no peito, falta de ar e com uma rigidez terrível no corpo. Meu queixo tremia como se eu estivesse com muito frio.

MUSEU
Projeção do Museu de Língua Portuguesa. – Foto Michelle MKO

Consegui me sentar em um lugar e liguei para minha namorada que estava em outra sala. Pedi para ela me tirar de lá. Uma moça da segurança veio até mim, perguntou para minha namorada que já estava ali comigo se precisava chamar os bombeiros e ela disse que não. A profissional nos conduziu a um elevador privativo e eu mal conseguia andar. Meu corpo parecia de cimento. Pesado e duro. E eu chorava e tremia muito. No pátio do térreo, outra segurança veio e me trouxe um copo de água e perguntou se precisava chamar a ambulância. Eu não conseguia parar de chorar. Havia um misto de frustração, de vergonha, de sensação de fracasso e de vontade de desaparecer, de entrar em um buraco e ficar sozinha para sempre. Minha namorada foi tentando me acalmar e eu só pedia: me tire daqui.

Ela chamou um uber e fomos a um restaurante onde ela pediu um suco de maracujá para me acalmar. Naquele momento eu me senti a pior pessoa do mundo. Achei que tinha estragado o dia e a viagem e só chorava e pedia desculpas. Fiquei muito constrangida e precisei de uma sessão extra de terapia. Minha psicóloga, uma profissional maravilhosa, mesmo estando de férias no exterior, me atendeu e me deu suporte para aquele episódio terrível que tive de pânico. Eu lamento muito que não consiga me controlar em situações como essa. O meu nível de autocobrança é muito grande e minha psicóloga me alerta muito sobre isso. O fato é que não consegui conhecer o Museu de Língua Portuguesa e pude perceber o quanto ainda estou traumatizada. 

Saúde mental é um assunto delicado que ainda gera preconceito e intolerância por boa parte das pessoas. Já ouvi de tudo, de que isso é falta de Deus ou de fé, que isso é frescura, que isso é desculpa para não trabalhar, que eu não penso positivo o suficiente para mudar minha realidade e o mundo à minha volta, entre tantas outras falas nada empáticas. Mas, assim como eu, quem passa por isso sabe o quanto é terrível ter que lidar com os sintomas físicos e emocionais da doença e com a truculência do mercado de trabalho e de algumas pessoas. Ter um grupo de apoio é importante para lidar com todas essas questões. Estender as mãos a quem está passando por um adoecimento mental é muito melhor do que soterrar o outro com cobranças que só potencializam seus desconfortos. Não seja você mais uma peça no Museu do trauma do outro. 

Foto

Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

COMENTÁRIOS

  • Michelle MKO

    Obrigada pelas palavras carinhosas e pelo acolhimento, Jefferson! Assim eu sigo: um dia de cada vez.

  • Jefferson Lima

    Oi Michelle, apesar de revelar um trauma e expor uma dor, parabéns pelo texto claro e visceral. Você é uma mulher de fibra. Não se sinta culpada por testar os seus limites e sentir necessidade de recuar. Outros dias virão, outras visitas a este e a outros museus serão possíveis. O autoconhecimento te trará percepção mais assertiva de quando for possível dar um passo além, ir um pouco mais. Bjs.

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