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Moderna ou elitista?

Semana Moderna ou elitista?: A História está repleta de exemplos de narrativas que registram perspectivas hegemônicas sobre fatos históricos e apagam outros vieses e perspectivas de personagens destas mesmas narrativas.

Por Michelle MKO

Nesta semana comemora-se 100 anos da Semana de Arte Moderna.  Mas, afinal, o que foi este evento paulista e qual foi a relevância do encontro para nossa cultura? Quais foram as atividades realizadas e quem foram os participantes? Vou tentar lançar um olhar sobre a Semana de Arte Moderna e propor algumas reflexões.

Em fevereiro de 1922, mais especificamente nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, um grupo intelectual de artistas plásticos, escritores e jornalistas promoveu um festival no Teatro Municipal de São Paulo. O evento, batizado de Semana da Arte Moderna, era uma proposta de se fazer arte de uma maneira nova, buscando quebrar paradigmas e padrões, sobretudo os da Europa, conferindo a este novo jeito uma identidade própria, dita moderna e genuinamente brasileira. Cada dia da Semana se dedicou a um aspecto cultural no qual puderam explorar escultura, pintura, poesia, música e literatura.

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Entre os organizadores, destacam-se Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Anita Malfatti. Tarsila do Amaral, embora seja um ícone do Modernismo brasileiro, não participou porque estava em Paris e Manuel Bandeira, cujo poema Os Sapos fez parte da Semana, estava com uma crise de tuberculose e foi representado por Ronald de Carvalho. Heitor Villa-Lobos, Plínio Salgado, Menotti Del Picchia, Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida, Tácito de Almeida, Agenor Fernandes Barbosa, Sérgio Milliet, entre outros também compuseram o grupo. Mas, afinal, quem eram estes participantes? Eram basicamente homens pertencentes a uma elite intelectual branca e, somente quatro mulheres, também brancas, participaram do evento e sem espaço para a fala. Não houve representação negra, indígena e popular. Aliás, o único negro presente, Mário de Andrade, não se considerava como tal.

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Imagens: Reprodução

A ausência de representatividade não parece transparecer um cenário brasileiro diverso e acessível do grande público. Enquanto Villa-Lobos tocava piano clássico com suas ricas partituras e fazia parte da Semana, Pixinguinha, autor do clássico Carinhoso, era conhecido no Brasil e estava em Paris mostrando seu trabalho de música essencialmente popular, que era uma mistura de ritmos de salão europeu, com os de origem negra e de bares e cafés. A antropóloga e escritora Deborah Goldemberg e mais um grupo de estudiosos revisitam o Modernismo, cuja questão indígena serviu como inspiração para muitas obras. Alguns estudos indicam até que Mário de Andrade, autor do clássico Macunaíma – o herói sem nenhum caráter sequer pisou na tribo indígena taurepangue para coletar informações para sua obra – e o mito de Makunaimã é de lá! Isso é o que os antropólogos chamam de objetificação dos indígenas sem que eles mesmos tivessem acesso ao que foi dito sobre eles.

A Semana da Arte Moderna não teve muito destaque na época. Para os seus idealizadores, foi um momento de grande profusão, claro, mas poucos órgãos de imprensa de São Paulo soltaram alguma nota, a não ser aqueles em que os próprios participantes escreviam ou colaboravam. O restante do país sequer soube da existência do evento. No entanto, Mário de Andrade, por volta de 1940, começou a proferir palestras e conferências sobre a Semana da Arte Moderna, despertando atenção e curiosidade de muitos. Alguns teóricos e estudiosos, como o sociólogo e crítico literário da Universidade de São Paulo, Antônio Cândido, dedicaram pesquisas e análises sobre a Semana e acabaram por transformar o Modernismo brasileiro em teoria literária. Ou seja, o reconhecimento veio posteriormente e motivado por uma classificação teórica de crítica literária e artística.

Uma vez transformada em teoria, passou a ser estudada nos mais variados segmentos acadêmicos e de ensino básico. Sobre este tipo de fenômeno, o compositor Livio Tragtenberg, criador da Orquestra de Músicos das Ruas de São Paulo e ex-professor da Universidade Estadual de Campinas tece uma observação interessante. Para Livio, é preciso ter clareza de quem nomeia o quê, quem classifica algo como moderno ou não, porque a nomenclatura e a classificação vêm de uma narrativa de um grupo e podem ser momentâneas. A História está repleta de exemplos de narrativas que registram perspectivas hegemônicas sobre fatos históricos e apagam outros vieses e perspectivas de personagens destas mesmas narrativas.

Todas estas informações invalidam a importância histórica da Semana de Arte Moderna? Não, claro que não! Há trabalhos lindíssimos e olhares interessantes eternizados pelas obras que compõem o evento. De fato, foi um acontecimento emblemático e importante, ainda que de elite para elite, mas, espera-se com tais observações, trazer à luz a ideia de que o que costuma ficar na obscuridade, o que costuma ser menos valorizado assim o é e está dado ao seu caráter essencialmente popular e diverso.

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Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

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