Crônicas
espectadora

Espectadora

Abri um vinho. Seco e barato. Acostumando o paladar à ausência do doce. Não senti falta da docilidade.

Por Michelle MKO

Noite do dia 2 de novembro de 2022. Tenho andado com as emoções em suspenso. Chegando em meu peito quase em câmera lenta. Às vezes até sinto um resquício de uma delicadeza quase pedindo perdão e licença para se achegar. Tenho estado mais em silêncio hoje. Tentando ouvir a mim mesma. Sentindo minhas caraminholas girando, girando, girando. Tampando meus ouvidos para os gemidos do mundo. Já bastam os meus. Pela janela acesa na palma da mão, corro o dedo e assisto à vida. Parece que o mundo está como em um clipe de música. A letra em outra língua, uma que eu não consigo compreender o que está sendo cantado. Um esbarrão no meu pé dolorido. Vejo meus gatos correndo, brincando, se mordendo e se contorcendo. Pela janela vejo a luz do poste desenhando a chuva na noite fria. A casa silenciosa e na penumbra.

Arte: Michelle MKO

Redes Sociais

Pelas redes vejo as pessoas se movendo, falando sem som. Os lugares se enchendo de gente. As luzes das sirenes das viaturas acesas. Os policiais falando sem som. O cumprimento nazista sob o sol de novembro de 22. O coach estimulando pessoas a se tornarem ricas. As cirandas das mulheres curando o sagrado feminino. As manchetes repetidas sobre as manifestações bizarras do pós eleição. Os gatos fazendo gatices. Os artistas falando sem som. Massagens. Poemas. Breque. 

Arte: Michelle MKO

Mais cedo no supermercado também tive a sensação de clipe. Os caixas com filas grandes, não por causa do aumento de compradores, mas pela ausência de funcionários. Os carrinhos cada vez mais vazios e as caixas registradoras cada vez mais cheias. O lusco-fusco da tarde chuvosa. As gotas de chuva escorrendo pelas sacolas. A distância de casa se encurtando. Dentro, o abrigo. Abri um vinho. Seco e barato. Acostumando o paladar à ausência do doce. Não senti falta da docilidade. 

Arte: Michelle MKO

Limpei as caixas de areia dos gatos. Preparei a comida bebendo uma taça de vinho. Meu reflexo bordô tremido. A música da filha alta. Tudo treme. O chá aquecido no vasilhame. A fumaça sai tremida. Incapacidade de tragar. Vejo através da névoa minha filha falando sem som. Assisto atônita. Esta surdez seletiva. Fora silêncio. Dentro grito. Pedi para repetir. Ouvi palavras soltas. Murmurei alguma coisa. Fiz meu prato. Lembrei da minha mãe. As lágrimas na batata. Mais catchup. Mais um trago do vinho. Revejo fotos na galeria. Seleciono três e escrevo um pouco da minha dor. Posto. O coração acende. Curtidas. Transito entre janelas. Molho de pimenta na tela. Nada e tudo correndo. Fecho janelas. As dores não se fecham. Levo o prato e a taça pra pia. Subo as escadas. No espelho o desconforto. Tiro a bota. A roupa. Visto o pijama. Deito. Quatro gatos aos meus pés. Decido escrever e sai isto. Um resumo entorpecido de um dia finado. 

Foto

Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

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