LGBTQI+

Eróticas vivas

Os medos, os sonhos, as renúncias e os afetos lesboeróticos foram sendo levados e, aos poucos, e, sem perceber, começaram a tecer o que viria mais tarde a se tornar este importante projeto literário.

Por Michelle MKO

Belo Horizonte será a quarta capital escolhida para o lançamento da antologia Eróticas, do selo carioca Cássias Imperiais. Nesta quinta à noite, 30 de junho, a partir das 18 horas, as mineiras e os mineiros terão a oportunidade de conhecer um livro que já nasce como potência. Dizer que o lançamento fecha o mês do orgulho LGBTQIA+ já é por demais representativo e relevante, mas, ser lançado na Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, em Belo Horizonte, em plena Praça da Liberdade, só aumenta a simbologia e o desejo libertário que fundamenta este belo projeto literário.

eróticas erótica

Acontecer em um espaço cultural público e estadual, tem outra força simbólica para as oitenta mulheres lésbicas e bissexuais que escreveram o livro, sobretudo para muitas das quais a marginalidade foi o espaço que lhes coube e a hostilidade foi a resposta social para o seu sentir e o seu existir dentro de um coletivo intolerante. Basta lembrarmos que o Brasil segue sendo um dos países que mais mata pessoas LGBTQIA+, portanto, criar a coletânea Eróticas, composta de poesias com um plural erotismo de mulheres que amam mulheres, é criar um ato de resistência e também uma resposta na justa medida da delicadeza e do empoderamento do sentir em uma sociedade patriarcal e entorpecida como a nossa.

Sonhos e vozes

Daniela Wainer, sapatona carioca, capricorniana de 39 anos, escritora e editora do selo Cássias Imperiais é uma das idealizadoras e realizadoras do livro. Adriele do Carmo, pisciana lésbica, baiana, 26 anos, relações públicas, poeta e produtora cultural, é a outra imaginadora e executora do projeto Eróticas. Aliás, o gene da reunião de mulheres para a troca de poesias, nasceu com ela no período mais intenso da pandemia. Isolada, ela criou o Sarau Erótica para LBTs em formato on-line, no qual mulheres de várias partes do Brasil se sentiam acolhidas e aquecidas na troca de versos e afetos.

daniela weiner adriele do carmo

Os medos, os sonhos, as renúncias e os afetos lesboeróticos foram sendo levados e, aos poucos, e, sem perceber, começaram a tecer o que viria mais tarde a se tornar este importante projeto literário. Dani, editora sagaz, percebeu o potencial de Dri e lançou a proposta de que Adriele escrevesse um livro de prosa pelo selo Cássias Imperiais. Mas, a baiana propôs algo ainda melhor e maior: abrir uma chamada nacional para poesia lesboerótica, afinal sua experiência com os Saraus, dos quais Dani participou desde a primeira edição, acendeu esta chama.

Toparam e assim iniciaram a gestação do Eróticas. Elas abriram um formulário de inscrição on-line no qual perguntavam qual seria a importância de se ter um poema publicado na coletânea e, segundo Adriele, as respostas foram “impactantes, simbólicas e políticas demais”. Dani observou que, à medida que foram lendo as poesias e acompanhando os perfis das(es) inscritas(es), perceberam que não eram ‘aventureiras’. “Eram pessoas realmente comprometidas com a escrita e que estavam batalhando por uma chance de serem publicadas”. Sendo assim, o que a princípio seria um concurso no qual selecionariam 30 candidatas(es), tornou-se uma acolhida de todas as 80 mulheres inscritas! E quando comunicaram a decisão houve forte comoção entre todas(es). Indagadas as poetas participantes sobre qual foi a sensação delas de fazerem parte da coletânea, recebi vários relatos comoventes.

eróticas

Há um sentimento quase unânime entre elas e me dei conta de que em mim também, afinal sou uma das 80 poetas: identificação. A percepção de que o sentir que transcende a heteronormatividade e de que os desejos, gostares e vivências se aproximam em alguma medida e vai além da questão de territórios, classes sociais, ou qualquer outra tentativa de uma segmentação, traz a ideia de pertencimento e dirime a sensação da solidão, do amar sem consonância. Porque buscamos a individualidade, mas é a partir do coletivo que ela se manifesta em sua riqueza e plenitude.

Ivani de Almeida, uma taurina de Barueri, São Paulo, do alto de seus 62 anos, descreve que se sente honrada: “Participar de uma Coletânea tão linda, tão expressiva com mulheres de tantas regiões, para mim que já sou ‘uma senhora’, é libertador. Mostra que as lutas que travamos e que ainda travaremos, foram e serão necessárias”.

A catarinense Djulia Marc, 25 anos, conta que “é um prazer inenarrável saber que a subjetividade e poética de temática lésbica está dentro da literatura e tomando forma pra construir um lugar concreto pra outras autoras mulheres que se relacionem com mulheres. É potencializar essas narrativas que existem e não são só nossas, fazer elas ganharem vida e voz”.

Jaíne Chianca, geminiana de Tenente Laurentino Cruz, no Rio Grande do Norte, 27 anos, se sentiu privilegiada e destaca que acha incrível participar de uma produção com mulheres que amam mulheres. Ela complementa: “Saber que tanta gente lerá o que escrevemos e dentre essas, algumas vão se identificar com o que eu escrevi, tocar outra pessoa através da palavra e do impacto que ela tem é gigante. Essa coletânea é gigante e tornou-se uma produção de suma importância em um ambiente que ainda é escasso”.

Nesta linha, a baiana Nay Rosário, uma ariana de 30 anos, destaca que são muitas as sensações e que “Há o prazer de escrever sobre mulheres de forma poética sem o peso imposto socialmente. Há o prazer de me desnudar através das linhas. Há a felicidade em saber que mulheres tão distintas têm um ou alguns pensamentos similares aos meus ao ponto de nos reunirmos em uma coletânea que, facilmente, se tornará um marco na literatura nacional”.

Parir o amor

A materialização do livro foi um desafio, afinal o processo foi sendo integralmente executado on-line devido à pandemia e sem apoio financeiro nenhum, ou seja, bancado com recursos próprios da editora. Daniela assevera: “Percebi – editorialmente falando – que um livro com 80 poetas seria mais rico do que um livro com 30. Mas, abre um parênteses, nem sempre é financeiramente possível, há a questão da grana (um número maior de páginas gera mais custos de revisão, na diagramação, na impressão, em tudo) e há também o trabalho hercúleo para organizar tudo isso”.

Adriele salienta que “todas as decisões e ideias foram construídas pelas duas de forma muito cuidadosa”. As oitenta mulheres estão distribuídas por todo território nacional e houve até a participação de uma da América Latina, possibilitando um amplo panorama do que tem sido produzido em termos de poesia lesboerótica atualmente. A própria história de vida diversa de Daniela e Adriele possibilitou a pluralidade de olhar para os poemas e o processo de elaboração do livro. Sobre a diversidade das poetas, Adriele fala: “Temos poetas das mais distintas histórias, territorialidades, idades e vivências possíveis. Há uma diversidade de condição social, escolaridade, profissão, racialidade enorme”.  Daniela comenta: “Antes de tudo, somos escritoras(es/us). Só quem escreve sabe o quão difícil é publicar. Então gosto de enfatizar a importância do projeto ser um livro, e de poesias. Não é cinema, não é música. É poesia, é palavra. Um elemento excessivamente sutil para esse universo de show business. Sinto que este projeto foi único, foi um fenômeno, dessas coisas que não se explicam direito, que só dá numa determinada hora, num determinado local. O grupo que se juntou é daqueles grupos bons demais, talentoso, generoso e colaborativo. Foi tudo acontecendo de forma orgânica”.

eróticas

Então, após todo este esforço, a coletânea Eróticas foi parida em 2022 e teve seu primeiro lançamento no Rio de Janeiro em 30 de abril. Depois foi em São Paulo em 05/05, Salvador 28/05, BH 30/06 e Porto Alegre será dia 02/07. Nasce o registro histórico de um grito coletivo de mulheres que amam mulheres e que reivindicam o direito de existir, de sentir, de decidir sobre seus corpos e seus afetos para além dos estereótipos e limitações sociais. Apresentamos ao mundo: Eróticas!

eróticas
Foto

Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

COMENTÁRIOS

OUTROS POSTS DO MESMO AUTOR

COLUNISTAS