Crônicas
DOR

Engrenagem da dor

Ajudei a abrir a urna e a vi ali linda e serena. Não havia dor. Não havia gemido e nem choro. Dela. Mas em mim, sim.

Por Michelle MKO

Mais uma noite insone. O correr das horas vem trazendo as lembranças e as lágrimas. Enquanto minha mãe tinha forças, segurava minha mão com firmeza ali no hospital. Quando eu precisava fazer algum procedimento com ela, eu precisava me desvencilhar das suas mãos com toda a delicadeza porque, além dos cateteres, sua pele estava frágil e eu não queria causar maiores danos. Aquelas mãos macias, quentinhas e cheirosas… O som daquele choro gemente que ela arrastou por dias a fio não sai da minha cabeça. Uma sinfonia de dor. E como a acústica desta lembrança dói e me tortura! Tento desesperadamente me lembrar das coisas boas, do som da gargalhada dela, das suas conversas e manias engraçadas, mas as lembranças dos dolorosos dias derradeiros vêm com tudo.

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Foto: Arquivo pessoal

Quando percebo, já estou ali repousada nas tristes memórias mais recentes. Eu ali no leito fazendo carinho em seus lindos e macios cabelos, tocando de leve sua fronte e seu rosto, beijando suas mãos, tentando aliviar sua tensão da testa e acalmar sua respiração. Eu cantarolando a música preferida dela, Cantinho de Amor, no ouvido dela. O som do oxigênio. O meu ar paralisando. O som do oxigênio. Meu ar paralisando. As crises de pânico e ansiedade voltaram com tudo. Durante elas choro mexendo meu corpo pendularmente para frente e para trás, como se eu mesma me ninasse, já que ela não pode me ninar mais.

Foram muitas conversas literalmente ao pé do ouvido nos últimos tempos, sobretudo no hospital durante a internação. Muitos agradecimentos, muito carinho, mas havia momentos de embargo da voz também. Em alguns dias na sua casa, eu, deitada no colchão no chão ao lado da sua cama, segurando suas mãos trêmulas no avançar das horas das madrugadas, vencida pela exaustão, eu suplicava que ela parasse de chorar. Mas ela não tinha controle sobre isso e me culpo amargamente por ter lhe pedido isso. Eu rezava com ela as preces preferidas dela, colocava músicas espíritas que ela gostava de ouvir, passava creme em seus pés e pernas, mas o choro dela não cedia. Só cedeu nos últimos dias com a morfina.

Eu procurava evitar que ela percebesse meu choro porque minha mãe sempre sofria de ver alguém sofrendo. Diante do panorama apresentado pela equipe de médicos da equipe de cuidados paliativos, eu precisava envidar esforços de incentivá-la a partir com tranquilidade e com a certeza de que ela cumpriu linda e resignadamente sua missão. Falei muitos eu te amo para ela e tive a honra e o privilégio de ouvir dela alguns “eu te amo também”, ainda que entrecortados de choro ou gemidos.

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Foto: Arquivo pessoal

Com o passar dos dias ali no hospital, ela foi diminuindo aos poucos as reações aos estímulos e, paradoxalmente, minhas reações se avolumaram. Sentir o fim se aproximando, perceber a vitalidade da minha mãe se esvaindo foi uma das experiências mais dolorosas que eu já tive na minha vida. Eu acredito que a partida dela foi um alívio para seu corpo já tão fragilizado pela doença, mas o percurso do adoecimento dela foi muito duro e me traz sentimentos conflitantes.

Certezas ruíram, outras estão em xeque. Eu sei a teoria de que a morte é a única certeza que temos na vida. Eu imagino que o tempo talvez possa curar esta dor e transformá-la em saudades. Eu acredito que amar não pode ser um gesto egoístico de querer manter quem amamos aqui a custa de sofrimentos. Eu compreendo que cada um tem sua hora. Eu sei um monte de coisas, mas também não sei nada. Definitivamente eu não sei nada. Fui me preparando para a partida dela, conversando com meus irmãos e familiares, mediando diálogos entre médicos e família, mas, quando vi os relatórios da minha irmã com as últimas checagens dos sinais vitais dela no grupo de informes, já fui ficando trêmula e chorosa. Entrei para o banho e fui rezando o Pai Nosso e a Ave Maria que ela gostava chorando e atenta às mensagens.

Liguei para meu irmão mais velho e pedi que ele fosse para o hospital dar força para minha irmã porque minha mãe estava indo. Mas falei isso chorando e talvez até em um tom imperativo. É que na véspera, eu percebendo o estado frágil da minha mãe, perguntei aos médicos se estava chegando a hora da partida. Eles me confirmaram e eu pedi autorização para a família se despedir. Eles me deram e, assim, avisei à família e, ao longo do dia, cada um teve dez minutos para se despedir dela. Esses parcos minutos doem. Mas sei que muitos não têm a oportunidade de se despedir dos que amam, então tento ser grata.

Uma das minhas irmãs, a mais nova que eu, disse que não daria conta de ir se despedir. Eu perguntei se ela queria enviar um áudio para que eu colocasse no ouvido da minha mãe que, mesmo sem responder a estímulos, provavelmente estava ouvindo tudo em alguma dimensão. Ela disse que não conseguia gravar porque ela estava sofrendo muito de ver minha mãe naquele estado e a voz não sairia. Falou que já tinha dito o que precisava para minha mãe enquanto ficou de acompanhante com ela na escala de revezamento.

Eu tinha prometido para minha mãe que estaria com ela, segurando a mão dela na hora do seu desenlace. Mas, foi eu sair de lá do hospital para isso acontecer. Diante dos últimos relatos dos sinais vitais dela no grupo, eu já chamei minha irmã no privado e perguntei se a mamãe estava indo, e olha que ironia, a mesma irmã que não conseguiu ir se despedir na véspera, coitada. Ela me disse que achava que sim, que ela estava indo embora. Eu não conseguia parar de chorar. Minutos depois, quando minha irmã avisou que ela se foi, urrei como um animal ferido.

Eu que tenho dificuldades para gritar, faltei estourar minha garganta de tanto grito. Eu que também tenho dificuldades para vomitar, vomitei de desespero. Eu tremia, chorava e minha filha tentava me acalmar. Depois destas reações catárticas fiquei sem conseguir reagir e pensar. Senti que me dissociei do meu corpo. Minha filha me chamava para levantar e irmos para a casa da minha mãe porque eu iria acompanhar meu cunhado para levar alguns papéis e documentos para o hospital, mas eu fiquei travada. Me pareceu uma eternidade essa trava. Meu corpo não me obedecia. E o carrasco da culpa e do flagelo não parava de me censurar pela minha reação e pelo desequilíbrio que se apossou de mim.

Minha filha foi conversando comigo e pediu que eu seguisse os comandos dela. Acabei conseguindo terminar de me vestir e pentear meus cabelos. Fui com meu cunhado para o hospital e pedi que me deixassem me despedir dela pela última vez. Mas não me permitiram. Foi uma madrugada triste, pesada. A orfandade se concretizou.

No dia seguinte, no horário combinado com a funerária, estava ali para recepcionar o corpo da minha mãe. Ajudei a abrir a urna e a vi ali linda e serena. Não havia dor. Não havia gemido e nem choro. Dela. Mas em mim, sim. Ajeitei o porquinho de pelúcia no colo dela. No velório os abraços, as conversas, as coroas de flores, as mensagens. Ela foi velada e enterrada no cemitério na rua dela mesmo. Ela já tinha dito que queria isso.

DOR
Foto: Arquivo pessoal

Espero que ela esteja bem e tranquila agora. Minha mãe foi uma gigante. Uma fortaleza, apesar de toda sua delicadeza. O sepultamento foi no dia da Independência. Achei simbólico. Ela estava, finalmente, nesta nova etapa de sua vida, recobrindo sua autonomia e independência depois deste doloroso processo de perda de autonomia. Sinto minhas emoções como uma complexa engrenagem enferrujada, barulhenta e lenta. Cada saliência da peça em atrito representa uma das minhas inúmeras sensações: amor, desamparo, tristeza, medo, gratidão, revolta, dor, muita dor e muita lágrima. Só sei que, apesar de todas as tentativas de nos agarrarmos a discursos e crenças de conforto, a dor é imensurável. Minha mãe se foi. Meu céu não é mais azul Celeste como os olhos e o nome dela, é nublado, denso e sufocante. 

Foto

Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

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