Crônicas

Amor Celeste

Questiono a vida e suas exigências. Questiono a mim mesma. E tudo, absolutamente tudo me dói aqui dentro.

Por Michelle MKO

É madrugada. São 21 dias ininterruptos de choro. O sono, este visitante raro, chega e vai embora como um revoar de pássaros. Batendo as asas para longe e deixando as lágrimas e as alucinações tomarem conta. São crianças em perigo. Paisagens distantes. Familiares que já partiram. Esta noite ela chorava e pedia a mãe. Clamava por um abraço e o meu não acolhia sua dor.

Entre comprimidos, carícias, massagens, gotas e aroma de lavanda, os gemidos persistem. Os sons guturais da garganta rompem a madrugada. As falas desconexas. O pedido constante de socorro. As orações em voz alta para ajudar os que precisam. E são tantos Pai Nossos e Ave Marias. Preces de Cáritas e cânticos espíritas. A pele já frágil se rompe nos braços e não há mais espaço para curativos. Flores púrpuras brotando na pele clara.

Os olhos azuis escorrendo lágrimas, a testa franzida, os sons que saem da garganta. Este é o cotidiano da minha mãe, aquela que nunca viu maldade no mundo. Que enxergava tudo belo e bom. Que amava ler e conversar. Que conversava com as plantas e com as flores. Aquela que gostava de dar e ganhar cafuné. Estou aqui desesperadamente tentando reter a imagem e as lembranças de uma mãe que há tempos partiu.

mãe mãe

Olhar para esta mulher incrível e vê-la cada vez menor e mais frágil me dilacera. São poucos quilos neste corpo e toneladas de angústias. Como a vida é efêmera… De um instante para o outro se parte. As pistas deste partir mal são percebidas pelo atropelo dos compromissos mundanos. E, de repente, os momentos que não foram aproveitados por toda esta insanidade vã de cumprir horários e compromissos vão tatuando na alma lembretes doloridos.

Minha ânsia de proporcionar o melhor para minha mãe pode ter muitas vezes me distanciado dela. Como este mundo é cruel! Nem infância eu tive direito porque cada lágrima dela eu queria secar e evitar que viesse outra. Eu abraçava a dor dela e queria atenuar seu sofrimento. Aos cinco anos eu comecei a guiá-la à noite. Aos onze eu estava com ela na hora do primeiro diagnóstico difícil: retinose pigmentar. O nome bonito e quase artístico, com galhos secos se formando na profundeza dos olhos, aos poucos foi tirando sua luz.

Os esbarrões, os tropeços, as batidas de cabeça, os objetos à volta caindo, como caíam aos poucos os seus horizontes. Aos 23 eu estava com ela no diagnóstico de glaucoma. Mais um ataque aos seus olhos e ao seu olhar. Nervos óticos cozidos e menos alcance da visão. As leituras foram ficando cada vez mais difíceis, mas ela não parava. Lia desesperadamente. Com o tempo óculos de leitura, depois lupa, por fim os áudios. E seu universo foi se estreitando pouco a pouco. Suas viagens por tempos e espaços longínquos, por culturas e histórias, por sorrisos e lágrimas foram finindo, finindo.

mãe mãe

E, entre dormires e despertares, seus dias foram aos poucos se misturando às noites e madrugadas. Aquele sorriso partindo cada vez mais e o choro, ah, este choro, como ele me dilacera. A sensação de impotência e pequenez me afligem. Tento não pensar nisso o tempo todo, mas não consigo. Me pego tantas vezes chorando pensando na dor dela. Nada tem graça para mim mais. Eu a coloco em meu colo e vou ninando lembranças, anseios e frustrações. Por vezes me revolto. Questiono Deus e Sua suposta justiça. Questiono a Ciência e suas limitações. Questiono a vida e suas exigências. Questiono a mim mesma. E tudo, absolutamente tudo me dói aqui dentro. Estou exausta. Em breve meu relógio vai despertar. Estou caindo de sono. Mais um dia chegando. Mais uma  jornada de angústia e impotência. Sono. Choro. Lágrimas. Exaustão. Este Amor Celeste me fez arco-íris, embora hoje eu me sinta apenas uma alma nublada pedindo minha mãe de volta.

Foto

Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

COMENTÁRIOS

  • DIVINA LUCIA DE SOUZA MEDEIROS NEDER

    Que texto forte, profundo, lindo! Como a vida tem beleza e poesia mesmo nos momentos difíceis. E dor...

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