Cultura

Elis, 40 anos depois

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida

Por Michelle MKO

Santa Luzia, minha cidade, última quinzena de outubro de 2022. Uma semana antes do segundo turno da eleição presidencial mais emblemática da nossa história. A cidade histórica, vizinha de Belo Horizonte, recebeu de presente um espetáculo maravilhoso produzido por Izabella Lorene e pela Bella Academia. O tema foi Elis Regina, mais especificamente os 40 anos sem Elis, completados em 19 de janeiro deste ano. O espetáculo aconteceu no Teatro Municipal Antônio Roberto de Almeida nos dias 21, 22 e 23. A peça mesclou trechos sonoros do filme Elis, produzido por Fabio Zavala e dirigido por Hugo Prata com quinze músicas de diferentes fases da artista. O espetáculo, um musical com balé, jazz contemporâneo e dança de rua, construiu uma narrativa emocionante sobre a trajetória de Elis Regina e foi assistido por pelo menos 400 pessoas, segundo os organizadores. 

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Elisângela Junia em Maria, Maria. / Foto: Reprodução
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Ângela Sandim em Maria, Maria. / Foto: Reprodução
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Gutielle Ribeiro na maravilhosa Moda de Sangue. / Foto: Reprodução

No palco, bailarinos de 16 a 56 anos, coincidentemente um intervalo de 40 anos também. A trilha sonora foi escolhida a dedo e conseguiu mostrar a atemporalidade de Elis Regina. A música de abertura, Redescobrir de Gonzaguinha, vibrou em nossos peitos. Não consegui conter as lágrimas nessa hora. Ver tanta gente jovem ali, usando o corpo como linguagem e a voz de Elis retumbante ao fundo foi emocionante. Os movimentos dos bailarinos contando a música memorável do eterno Gonzaguinha. 

Vai o bicho homem fruto da semente (memória)

Renascer da própria força, própria luz e fé (memória)

Entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós (história)

Somos a semente, ato, mente e voz (magia)

Minha relação com Elis é de sobrevivência. Ela me salvou em um momento extremamente delicado da minha vida, durante minha adolescência. A sensação que eu tive ali, sentada e dissolvida na escura plateia, é que este era o momento do meu renascimento. Forte. Pontual. Certeiro. Uma força para lidar com os múltiplos lutos que giram em meu seio agora.

Izabella Lorena, idealizadora do espetáculo e proprietária da Bella Academia de Dança e Arte, é uma geminiana de 29 anos com muita sede de desafios. Seu lema é que a Arte é para todos. Formada em Artes Visuais com habilitação em pintura na UFMG e Teatro, fez cursos de dança nacionais e internacionais. Estudante de Dança desde 2005, fundou a escola em 2014 e aposta todas as suas fichas na cidade luziense porque busca oportunizar pessoas de Santa Luzia à Arte. “Eu tive o privilégio de conseguir bolsa em escola em BH e só por isso fiz aulas. A escola sendo aqui posso facilitar para muitos”.

Bella conta que em 2019 coreografou a música Como Nossos Pais de Belchior interpretada por Elis Regina. Ela sempre gostou de Elis e decidiu que queria fazer um espetáculo com músicas brasileiras pós pandemia. Quando ela assistiu ao documentário “Viver é melhor que sonhar”, dirigido por Hugo Prata sobre a vida e a obra de Elis Regina, ela teve a certeza que este seria seu primeiro projeto de formação e profissionalização dos seus alunos. Ela sentiu um impulso de aproveitar o aniversário de 40 anos sem Elis para trazer parte de seu legado para as novas gerações. Bella se empenhou, propôs parcerias e iniciaram os ensaios. As datas escolhidas para as apresentações foram agendadas há muitos meses, ela sequer pensou que poderíamos estar passando por um segundo turno eleitoral agora. Foi uma feliz coincidência porque o espetáculo traz Elis Regina e seu repertório que parece escrito para nossos tempos, o que comprova o quanto Elis é atemporal e o quanto ela vibrava à frente de sua geração.

Um recorte da equipe gigante de gigantes bailarinos rodeados de familiares e amigos.

Emoções

É difícil dar destaque a uma ou outra parte do espetáculo, mas posso trazer alguns trechos para compartilhar com os amantes de Elis como eu. A música Black is Beautiful de Paulo e Marcos Valle foi coreografada lindamente pela bailarina Sara Patriny. A expressividade de olhar e os movimentos de Sara foram de tirar o fôlego. Era possível sentir a respiração do público suspensa. Em seguida, entram com um trecho do filme, o que Elis é interrogada pelos militares por causa da sua interpretação desta música, associada ao movimento negro estadunidense e após a repercussão de sua entrevista no exterior, onde ela associa os militares a gorilas. A coerção para que ela cantasse nas Olimpíadas do Exército foi reproduzida e gerou aquela tensão no ar. Em seguida, entra a bailarina Kléo Faria dançando Madalena com os braços contidos, justamente os braços, que renderam à Elis o apelido de Eliscóptero devido aos seus movimentos enquanto interpretava suas músicas. Outros bailarinos, trajando calças verdes camufladas, tentavam conter os movimentos de Elis. Em seguida, outro trecho do filme é sonorizado: a discussão entre Henfil e Elis. O cartunista enterrou a artista em sua coluna no Pasquim, jornal importante da época, e em outra, a colocou cantando para Hitler. Indignada, ela se defende dizendo que teve medo, que estava sendo vigiada e que seu filho corria perigo. Henfil rechaça a justificativa de Elis e lembra a ela quantos estavam sendo torturados, exilados ou mortos nos porões da ditadura, destacando inclusive seu irmão, Betinho, que foi torturado e exilado. Segue o espetáculo com músicas emblemáticas de Elis. Pouco depois, outro áudio de Henfil, incrédulo de que a música passaria pela censura e Elis responde que, a partir dali, ela decidia o que cantar, não haveria militar, gravadora, nada e ninguém que a demoveria de cantar o que ela quisesse. Os acordes de O Bêbado e a Equilibrista tomam o teatro. Um grupo grande de bailarinos entra coreografando a música que se tornou o hino da Anistia. Mais lágrimas. Como foi lindo isso e como Elis foi precisa e colossal! E como estamos correndo o risco de viver isso novamente!

Lorena Pettersen, uma libriana de 18 anos, conta que cresceu ouvindo músicas antigas, inclusive, Elis Regina. A jovem, que se diz surpresa de se ver como bailarina, conta que procurou dar o melhor da sua expressão na peça e que percebeu que isso foi mágico e transformador. Ela conta que condensar a vida de uma artista como Elis Regina e meses de ensaio em 50 minutos de espetáculo foi desafiador. A amizade dos participantes foi marcante para ela, sobretudo pela vibração que tinham na coxia a cada ato do espetáculo. Já a sagitariana Elisângela, de 43 anos, destacou que se transformar em Elis, ainda que por poucos instantes, é uma responsabilidade muito grande. Esther, outra sagitariana, 17 anos, disse que participar do espetáculo foi uma honra e que o resultado foi mágico. Regina da Silva, capricorniana de 45 anos, foi uma das intérpretes da música Cinema Olympia, juntamente com Elisângela e outras bailarinas, todas com mais de 40 anos. Regina conta que já leu muito sobre o período militar no Brasil e que artistas como Elis Regina sofreram muito com a truculência e com a censura, mas que, segundo ela, “souberam reproduzir com maestria os sentimentos de dor, revolta, fragilidade,  mas também resistência contra o sistema que os oprimia através de sua expressão artística.”

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Performance de Cinema Olympia. / Foto: Reprodução

Ela observa que, fazer parte deste espetáculo em um momento tão decisivo, como o de proximidade do segundo turno das eleições presidenciais a fez suspirar e completa: “É lamentoso imaginar que  o país possa estar ingressando, por ingenuidade, cegueira, ignorância  e  desinformação,  novamente no  autoritarismo, com sérias consequências sociais,  violação dos direitos humanos, ameaça ambiental, entre tantos outros. Está em risco, acima de tudo, a democracia pela qual tantos morreram, ou foram torturados,  prejudicados, caluniados e  perseguidos sem que houvesse justiça ou a punição merecida  aos infratores”.

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As bailarinas 40+ de Cinema Olympia com sua coreógrafa Izabella Lorena. / Foto: Arquivo pessoal

Mas nem todos os bailarinos conheciam Elis. Sobretudo alguns jovens e, ao se depararem com o enredo do espetáculo, que teve uma preparação longa e disciplinada, perceberam a grandiosidade da artista e sua importância para a história da nossa música. A preparação contou com a exibição do filme Elis e do documentário com as cenas que ficaram fora do filme, bem como com as escutas disciplinadas das músicas para criarem a coreografia.

O interessante do espetáculo é que ele abordou não somente as músicas mais conhecidas da Elis, como a clássica Como Nossos Pais, de Belchior e Águas de Março de Tom Jobim, como também trouxe outras menos conhecidas, como Tiro ao Álvaro, de uma gravação maravilhosa com Adoniran Barbosa e uma versão mixada de Fotografia de Tom Jobim. Mas a interpretação de uma quase desconhecida do grande público, Moda de Sangue, de Ivaldo Roque e Jerônimo Jardim, pela bailarina Gutielle Ribeiro, em uma participação especial, foi estonteante. Guti ficou de costas para a plateia e fez movimentos lindos com suas costas e escápulas. Mais lágrimas, tamanha a beleza. Novamente a respiração da plateia ficou suspensa.

O espetáculo resgatou ainda Maria, Maria, Só Tinha de Ser com Você, Agnus Sei, Velha Roupa Colorida e Fascinação. Esta última, protagonizada pela própria Izabella, idealizadora do espetáculo com o bailarino Ramon Reis. Bella trajava um vestido vermelho com brilhos e rendas transparentes e fez uma apresentação impecável de dança de salão ao som delicioso da versão de Elis de um clássico francês e italiano gravado por Armando Louzada. A sensualidade da dança com a voz ímpar de Elis criou uma aura de beleza e delicadeza. Se eu tivesse uma rosa na mão, teria jogado ali no palco naquele momento. 

Izabella Lorene e Ramon Reis na sensual performance de Fascinação./ Foto: Reprodução
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Sara Patriny em uma de suas inúmeras participações. O clássico Águas de Março. / Foto: Reprodução

Ao final, todos os bailarinos subiram ao palco ao som de Velha Roupa Colorida, de Belchior. 

Você não sente nem vê

Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo

Que uma nova mudança em breve vai acontecer

E o que há algum tempo era jovem, novo, hoje é antigo

E precisamos todos rejuvenescer […]

No presente a mente, o corpo é diferente

E o passado é uma roupa que não nos serve mais

No presente a mente, o corpo é diferente

E o passado é uma roupa que não nos serve mais

Você não sente nem vê

Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo

Que uma nova mudança em breve vai acontecer

E o que há algum tempo era jovem novo, hoje é antigo

E precisamos todos rejuvenescer

Como Poe, poeta louco americano

Eu pergunto ao passarinho

Assum preto, black bird

Pássaro preto o que se faz?

Raven, never, raven, never, never, never, never raven

Assum preto, black bird

Pássaro preto, me responde

Tudo já ficou atrás?

Raven, never, raven, never, never, never, never raven

Assum preto, black bird

Pássaro preto, me responde

O passado nunca mais

Que a truculência e a barbaridade do passado não voltem mais. Que os cantos dos pássaros tragam esperança de dias melhores. Que no solo do Brasil não precisem mais chorar as Marias e Clarices e que a esperança equilibrista siga seu percurso com segurança. Que os prantos não sejam maiores do que os mares. O tempo vence toda ilusão. Agnus sei. 

Ficha técnica

Direção Geral e Produção: Izabella Lorene

Figurinos: Antônia e Izabella Lorene

Fotografia: Alex Silva e Arthur Sherman

Arte e Material Gráfico: Izabella Lorene e Papelaria Lanes

Iluminação e Som: Zé do Som

Edição de Trilha: Izabella Lorene

Filmagem: Arthur Sherman

Apoiadores: Modelo Netimóveis, Zé do Som, Visite Santa Luzia, Saulo Silva, Sherman Foto e Video, Papelaria Lanes, Alex Silva Fotografia, Suzy Aleixo, Hair Designer Master e Bella Academia Mineira de Arte.

Dias 21 e 23 participação Diego Gualberto no Saxofone

Dia 22 Helbert Monserrat Voz e violão e Tradução em Libras com Dinalva Andrade

Convidados: Ramon Reis e Grupo de Dança Harmonia, Gutielle Ribeiro, Getúlio Ramalho, Marcella Gozzi e bailarinas.

Foto

Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

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