Educação
educação básica Arte: Michelle MKO

Educação Pública e Básica

Educação Pública e Básica: um desafio do tamanho do Brasil

Por Michelle MKO

A Educação básica e pública passa por grandes desafios na atualidade. Além do corte sistemático de investimentos nos últimos anos, a precarização do trabalho dos profissionais, o déficit de professores e de vagas para alunos, há uma onda de desânimo entre os estudantes que, em geral, não veem a Escola como um ambiente atrativo. 

Parte do desinteresse pode se dar pela organização do tempo e do espaço escolar, cujo dia fica dividido em cinco aulas de 50 minutos em conteúdos que muitas vezes não dialogam entre si. As salas de aulas geralmente são pequenas e ficam lotadas. As carteiras são organizadas em fileiras e os alunos dispostos uns de costas para os outros. O conteúdo programático das disciplinas é distribuído ao longo do ano e se divide em bimestres. Ao final, é preciso que todo o conteúdo tenha sido trabalhado para que os alunos não fiquem com defasagem. Entretanto, a distribuição do tempo e a dinâmica em sala de aula que precisa de organização, chamada, aulas expositivas, trabalhos em grupo, avaliações mensais e bimestrais acaba exigindo muito para o cumprimento deste desafio. O ideal seria que as aulas acontecessem em horário integral, mas, sabemos que este modelo educacional, sobretudo em escolas públicas de periferias e de comunidades carentes, pode não ter êxito devido ao contexto social. Isso porque muitos alunos precisam trabalhar para ajudar na renda familiar ou mesmo assumir tarefas domésticas que demandam um tempo maior em casa para que seus pais e responsáveis trabalhem. Seria preciso que houvesse políticas públicas voltadas para a geração de empregos e salários com poder de compra digno às famílias para que os alunos pudessem se dedicar apenas ao seu processo de educação formal. Outro fator importante é a desvalorização profissional do Magistério que oferece baixos salários e obriga muitos professores a multiplicarem sua carga horária de trabalho para dar conta de pagar as contas no fim do mês – os professores estão entre os profissionais com formação em ensino superior que têm os menores salários! O resultado disso é que há déficit de professores, afinal os salários não são atrativos, mas, em contrapartida, as responsabilidades e os desafios são enormes. Atualmente, os cursos de licenciatura são os menos procurados nas Universidades e Instituições de Ensino Superior e, a médio e longo prazo, isso é preocupante. 

Sem internet

Há também precariedade de muitos espaços escolares que não têm o básico e muito menos laboratório de informática com acesso a computadores para todos os alunos. Falta também uma rede de internet que dê conta da demanda de uma escola. Muitas famílias não têm acesso à internet para que seus filhos estudem em casa e o impacto disso é sentido no dia a dia. A pandemia e o ensino remoto comprovou esta defasagem e os reflexos no percurso educacional dos alunos que não conseguiram estudar com qualidade neste período serão sentidos por muito tempo ainda, infelizmente. Outro ponto a ser observado é que o acesso à informações que os alunos têm no dia a dia de outras fontes que não a própria Escola, precisam ser discutidos e problematizados entre eles e os professores, afinal a Educação também precisa refletir sobre a sociedade e o mundo na atualidade para, então, transformá-la. Sendo assim, aquele modelo de módulos de aula de 50 minutos pode não contribuir muito para a otimização do tempo x conteúdo x problematização. 

Do macro ao micro

Muitos devem estar pensando que esta breve e parcial análise sobre o contexto educacional e escolar da rede pública de ensino básico é triste e desoladora. E, sim, é. São muitos os problemas enfrentados pela Escola que vão desde o sistema educacional, até os de infraestrutura e das mazelas sociais. Sim, problemas sociais como fome, desemprego, violência, discriminação e intolerância, por exemplo, também se manifestam por dentro dos muros da escola. Mas, felizmente, para muitos profissionais da Educação, tais desafios são contornados ou minimizados graças ao empenho, à competência e à vontade de transformar a realidade daqueles que têm na Escola sua principal mola de propulsão para a vida. É através dela que se tem a oportunidade de chegar ao Ensino Superior e também de mudar de classe social. Sim, em tempos cujos blogueiros e influencers recebem muito dinheiro para fazer vídeos de dancinhas ou fazer propaganda de produtos, convencer o alunado de que estudar é o meio mais seguro para que ele consiga conquistar conhecimento e gerar transformações sociais exige muito jogo de cintura e poder de persuasão dos professores .

A Escola Estadual Presidente Itamar Franco, situada no Bairro Belo Vale em Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte, é uma instituição escolar privilegiada, apesar dos seus inúmeros desafios. Com 1320 alunos matriculados e funcionando em três turnos distribuídos entre 39 turmas do Fundamental II (6° ao 9° ano) e Ensino Médio (1° ao 3° ano), a Escola tem em seu quadro profissional 103 servidores distribuídos entre os cargos de professores, especialistas, assistentes e auxiliares que se dedicam a um trabalho de motivação e excelência, apesar dos pesares. A escola, com a infraestrutura padrão mantida pelo Estado, possui 15 salas de aula, uma Biblioteca, um refeitório, quadra coberta, banheiro adaptado e rampa com acessibilidade ao segundo pavimento, uma sala de multimídia que funciona sob reserva e um laboratório simples de Ciências. Um diferencial do PIF, como é carinhosamente chamado, é que a maioria dos professores faz parte do quadro efetivo do Estado, ou seja, são concursados. Embora a legislação exija que todo servidor público seja concursado, o Estado de Minas Gerais tem um déficit de servidores que obriga as escolas a contratarem (designarem) servidores para ocuparem os cargos vagos. Este tipo de contratação temporária, além de precarizar o trabalho, provoca, em alguma medida, uma instabilidade na prestação de serviços. Servidores efetivos que se licenciam por motivos de saúde, por exemplo, precisam ser substituídos por outros contratados. Mas, em um estudo realizado pelo DIEESE em 2021, observou-se que 56% dos profissionais de Educação em Minas são contratados sem concurso público e apenas 38,9% são efetivos. 

Uma luz no fim do túnel

Maria Adélia, 53 anos, professora de Língua Portuguesa há 16 anos, é concursada e faz parte do quadro de professores concursados do PIF. Atualmente ela leciona para os 8° e 7° anos, compostos por alunos entre 12 e 15 anos. Ela, assim como a grande maioria dos profissionais, observou que o pós pandemia trouxe demandas significativas para a sala de aula. Segundo Maria Adélia, “desde conteúdos que os alunos não aprenderam durante as aulas remotas, quanto o reaprender o sentido da escola, a convivência com colegas e professores/as. A intolerância, o desrespeito, o racismo e o bullying estavam muito presentes na fala e nas atitudes dos alunos”. 

A realidade foi chocante para todos. Era preciso propor soluções para estes problemas. Como ponto de partida, os profissionais da escola, motivados pela professora Guiomar Timóteo, também de Língua Portuguesa, desenvolveram um projeto que propunha a valorização da vida e o autoconhecimento. Foram levantadas questões sensíveis à individualidade e ao coletivo que mobilizaram toda a Escola, sobretudo no mês de Setembro com o mote da Campanha Nacional de Combate ao Suicídio. 

Dentro do cronograma da escola, a temática da Consciência Negra ficou para ser trabalhada ao longo do ano e aprofundada no 4° bimestre. Foi então que Maria Adélia encabeçou o projeto Africanidades que igualmente mobilizou toda a Escola. O projeto propunha refletir sobre as raízes da cultura brasileira e sua formação identitária, com o intuito de recolocar e trazer para a sala de aula essa pauta tão importante. Conversas e bate-papo com os colegas de trabalho na sala dos/as professores/as foram subsidiando a construção do projeto Africanidades. Aline Marinho, 39 anos, professora de Geografia dos 7° e 8° anos foi uma das que também se envolveu no projeto e percebeu o entusiasmo dos alunos no desenvolvimento das atividades. Ela contou que “esse projeto só foi um sucesso graças à dedicação e ao envolvimento de muitos profissionais e dos alunos que se entusiasmaram e fizeram o seu melhor”. 

educação básica
Arte: Michelle MKO

As relações étnicorraciais na escola foram observadas e foi possível compreender a perversidade do racismo estrutural na própria comunidade escolar. Ações de combate à discriminção e ao preconceito e o fomento de uma convivência harmônica com as diversidades foram sendo paulatinamente consolidadas. Três etapas foram definidas para o Africanidades. Na primeira, haveria estudos, atividades e pesquisas direcionadas pelo docente com todas as turmas. Professores/as fizeram uma seleção de filmes, documentários, músicas, literatura, dentre outros, para favorecer o aprendizado. Na segunda etapa, propuseram palestras e rodas de conversas com convidados. Tiago Heliodoro Nascimento, graduado em História pela PUC, Mestre e Doutor em Antropologia pela UFMG fez uma roda de conversa com os alunos para discutir a presença dos negros na Ciência. Maria Florguerreira, Educadora étnico cultural, da etnia Pataxó, falou de educação e cultura indígena, sobre os povos originários e a relação que eles têm com o meio ambiente e fez ainda, uma dinâmica indígena com os alunos. Débora Rodrigues Azevedo, doutoranda em Educação e Inclusão social, falou sobre comunidades quilombolas, em especial a de Pinhões, que é de Santa Luzia, cidade onde se situa o PIF. Mariuza Leopoldo, uma ex-professora da Escola, foi convidada a participar da 3ª etapa, a culminância do turno da tarde com o relato de suas viagens à África e a exposição de suas artes e objetos trazidos da Terra Mãe. A Mostra Cultural aconteceu em todos os turnos com a exibição de materiais produzidos pelos próprios alunos. De cartazes e exposições até pratos típicos e dinâmicas realizadas pelos estudantes, além de exibição de teatro sobre clássicos da nossa literatura que abordam as temáticas do projeto. 

EDUCAÇÃO BÁSICA
Arte: Michelle MKO

Como resultado foi possível trabalhar o antirracismo, os povos originários do Brasil – os indígenas – e suas culturas, bem como culturas tradicionais quilombolas, religiões de matrizes africanas, entre outras. Tudo com respeito, partilha e amorosidade. A escola se encheu de cores e aromas ao longo do desenvolvimento do projeto Africanidades que, aliás, se sustenta em uma educação antirracista e tem como eixos norteadores as leis 10.639/2003 e 11.645/2008. O Dia da Consciência Negra é um simbolismo importante cravado no calendário brasileiro, mas, na escola Presidente Itamar Franco, é um trabalho constante de conscientização e reconhecimento para o combate ao racismo e aos múltiplos preconceitos. Nesse sentido, a escola propõe a tarefa em seu papel preponderante de construção de saberes, mas, instrumentaliza os estudantes para que eles tenham condições de intervir na sua própria realidade, de modo a transformá-la.

Enem 

É importante que no processo educacional os alunos compreendam os problemas sociais, reflitam sobre eles e pensem conjuntamente em soluções para os mesmos. A rigor, todo estudante precisa conseguir fazer este percurso de aprendizado e ter competência para relacionar, argumentar e propor soluções para os problemas sociais para concluir com êxito a sua formação. A maneira como a prova do Exame Nacional do Ensino Médio, Enem, é montada corrobora esta exigência. 

A prova do Enem é agrupada em áreas de conhecimentos e exige dos alunos uma boa leitura do mundo e uma boa habilidade de relacionar assuntos e conteúdos formais (aprendidos no percurso da educação escolar) e informais (os de fora da escola, da sociedade). Os alunos que concluem o Ensino Médio e querem ingressar no Ensino Superior precisam se sair bem nesta prova que é realizada em dois dias, com cinco horas de duração em um dia e cinco horas e trinta minutos de duração no dia que tem a Redação. A temida redação vale mil pontos e é um texto dissertativo e argumentativo no qual os estudantes precisam relacionar a temática (geralmente um problema social de relevância) com os conteúdos apreendidos ao longo de sua formação e propor solução para o problema apresentado. O tema da redação deste ano foi  ‘Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil’. 

Os alunos da Escola Itamar Franco que prestaram o Enem tiveram o benefício de se depararem com um tema que havia sido trabalhado no projeto Africanidades. A professora de língua Portuguesa Leandra Oliveira, observou que a indígena Maria Florguerreira falou “da importância das coisas simples, oriundas da natureza, e que mesmo que em sua casa tenha luz elétrica, ela conserva o quintal sem luz artificial, lembrando que nosso corpo precisa aprender como lidar com a ausência de luz, e que os índios têm acesso à internet, conhecem jogos como o Free Fire, mas cultivam outros valores e princípios mais importantes e marcantes para  o ser humano”. Ela complementa que “essa educação intercultural  que se sustentou através dos encontros ricamente atrativos aos olhos e pensamentos fez abrir as portas da Escola Presidente Itamar Franco para um saber expandido que quebra mitos e desconstrói preconceitos e discriminações”.

Outra referência que os alunos do PIF tiveram e que caiu no Enem foi a de Carolina Maria de Jesus. Este ano ela foi inclusive eleita pela comunidade escolar para batizar a biblioteca da escola. O racismo estrutural, a fome, a pobreza e outras mazelas sociais descritas em sua principal obra, Quarto de Despejo, foram trazidos para os alunos que precisaram escolher entre Carolina Maria de Jesus e Lélia González para dar nome à biblioteca. 

EDUCAÇÃO BÁSICA
Arte: Michelle MKO

Apesar de todos os problemas estruturais da Educação e do sistema educacional descritos nesta matéria e outros tantos não citados por falta de espaço, uma instituição que tem profissionais engajados e cooperativos como a Escola Estadual Presidente Itamar Franco consegue fazer a diferença na vida dos estudantes e de toda a comunidade escolar. Que os professores e demais profissionais de ensino do PIF – e de todo o país – sejam valorizados, inclusive economicamente. Que a Educação se consolide como um projeto político de construção de eixos civilizatórios para a consolidação de uma sociedade mais agregadora e inclusiva, que saiba lidar com a diversidade e se valer dela para se mostrar rica e plural.

Foto

Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

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