LGBTQI+
gênero

A língua é de todes

Olhares sobre o gênero neutro

Por Michelle MKO

É sabido que nossa língua é heteronormativa e, como tal, um reflexo da nossa sociedade: purista e reacionária. Não faltam situações de como a normatividade da língua é usada como mecanismo de segmentação de classe e status social. As piadas com os registros coloquiais da língua em cartazes, a obrigatoriedade de se dominar o padrão normativo da língua para exercer determinados cargos ou aceder a uma instituição de ensino são exemplos de como o preconceito linguístico existe e segmenta a sociedade. Desta forma, a apropriação da língua em sua pluralidade é, antes de tudo, um movimento político de representatividade. No rol desta discussão e, dando prosseguimento à nossa série sobre linguagem neutra, trazemos provocações acerca da utilização do gênero neutro nos mais variados contextos.

Sabemos que a fala sofre transformações a uma velocidade mais rápida. O registro escrito costuma ser mais lento ou mesmo refutar a língua em uso, se este for se valer da concepção normativa. A formalidade linguística e a normatividade são importantes em determinadas práticas sociais, sobretudo nas mais formais as quais envolvem documentações e registros oficiais, por exemplo. Mas, reconheço o valor sociológico da língua e sua necessidade de se adaptar aos mais variados contextos. Entendo a língua como um instrumento de comunicação e como uma manifestação política de um povo. E, nessa linha de pensamento, acho legítima a busca por uma identidade linguística. Nossa sociedade tem uma tendência a dualizar a visão sobre praticamente tudo, inclusive sobre o gênero na língua marcado por masculino e feminino. Entretanto, há outras variáveis de gêneros sociais que não se sentem acolhidas socialmente, e muito menos se sentem representadas pela língua.

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Na rua, na chuva, na fazenda, na academia e na escola

ed marte
Ed Marte – Foto: Arquivo pessoal

Ed Marte, artiste de performance teatral e de intervenção urbana, nascido em Martins Campos no centro-oeste mineiro há 53 anos, mora em Belo Horizonte desde a juventude e faz parte da Academia Transliterária, um coletivo de pessoas LGBTQI+ que fazem da literatura e da arte uma manifestação política. Ed Marte se declara como “artivista, não binarie, transvestigenere” e sua descrição já nos promove um olhar atento e inquietante no que concerne à particularidade e à pluralidade com que alguém se identifica socialmente. Figura marcante do cenário belorizontino, Ed nos concedeu uma deliciosa entrevista na qual fala com leveza e desenvoltura sobre o uso do gênero neutro na língua. A artivista reforça o empoderamento político de se utilizar o gênero neutro como representatividade social. Há aproximadamente nove anos Ed se percebeu como não-binarie, ou seja, alguém que não se identifica nem como homem, nem como mulher. Em seu cotidiano, dentro do que elu chamou de “bolha”, faz uso do gênero neutro em sua fala e percebe, sobretudo entre os jovens, uma boa receptividade e um emprego em ascensão deste tipo de linguagem. Ed integrou o Gabinetona, no mandato de Cida Falabella e transitou no âmbito legislativo por um mandato percebendo de perto o quão carentes estamos de iniciativas políticas de inclusão social de grupos minoritários.

Fabíola Amanda
Fabíola Amanda – Foto: Arquivo pessoal

Em contrapartida, Fabíola Amanda, 27 anos, modelo e mulher trans se posiciona contrária ao uso do gênero neutro na fala. Segundo ela, a inclusão de novas letras no grupo LGBTQI+, bem como a utilização do gênero neutro só levam a uma confusão entre as pessoas e a um maior preconceito social. Ela, que faz uso do gênero feminino para se referir a si mesma, diz que lutou muito para conquistar o direito de ser mulher, inclusive com registro de documentos com o nome social e que jamais utilizaria o gênero neutro. Segundo Fabíola, foram mais de cinco anos para conseguir regularizar toda sua documentação e ter sua identidade reconhecida socialmente. Foram gastos em cartórios, uma lista enorme de documentos e laudos médicos e psicológicos para conseguir ter o direito de mudar seu nome em seus documentos e não passar pelo constrangimento de não se reconhecer neles. Hoje, ela se orgulha de ser “uma mulher em gênero, número e grau”. Para ela não existe neutralidade, sua perspectiva é que existe apenas os gêneros masculino e feminino na língua, mesmo havendo outras identidades. Fabíola acredita que a luta pelo não binariedade é possivelmente uma moda entre os jovens e que ela acarreta muitos entraves sociais.

Tá viva, filha?

Eu acreditava que a língua era um organismo vivo. Sempre usei essa expressão para argumentar a adaptabilidade dela a cada contexto ou falante. Mas, aí li um artigo fantástico de Marcos Bagno, intitulado A língua não é um organismo vivo, lançado no site da Editora Parábola, e tudo fez mais sentido para mim. O linguista faz um apanhado histórico das línguas passando pelo conceito de gramática, lógica, psicologia, fisiologia, linguística e pela concepção normativa que impera em nossa sociedade. Ele traz a teoria de que “a língua só existe na mente e na boca de quem a fala e que, justamente por isso, não é “a língua” que muda e se transforma, somos nós, falantes da língua, que em nossas interações sociais por meio da linguagem provocamos a mudança linguística”. Sendo assim, não podemos nos esquivar de considerar uma mudança em curso, afinal, estamos vivendo em uma sociedade em profusão com profundas transformações no campo da construção de identidade. As interações sociais da atualidade vão acabar por cumprir o papel de pouco a pouco transformar a língua e inserir configurações de identidade mais inclusivas.

 Educação Afrotransgressora

Sob esse viés, a professora Fernanda Rodrigues de Figueiredo, docente e pesquisadora das áreas de educação e literatura há 18 anos, atuante na rede pública, coordenadora pedagógica de um Instituto e pesquisadora do Projeto Literafro da UFMG, tem uma prática pedagógica bem coerente. O tema sexualidade é considerado transversal e a linguagem neutra perpassa essa transversalidade. Para Fernanda, a maior dificuldade de se trabalhar com qualquer tema transversal é esbarrar em culturas alicerçadas em valores que impõem resistência àquilo que é novo ou que foge dos ditos padrões. E ela observa este tipo de comportamento conservador entre alunos, famílias e até entre pares de trabalho. O ponto de partida dela é sempre a Lei e os documentos norteadores que orientam a abordagem da diversidade. O estranhamento inicial costuma ser superado com a maneira como ela aborda os temas através de uma escuta respeitosa, de discussões sobre textos e vídeos que abordem a temática para promover um olhar crítico e empático entre os alunos. Fernanda pontua que as pessoas não têm moldes, que a sociedade costuma resistir ao diferente e que a Escola, embora seja um espaço a rigor destinado a este tipo de discussão e ao acolhimento de todo tipo de diversidade, ainda é um lugar de pouca prática inclusiva. Entretanto, em sua prática pedagógica ela procura abordar todos as transversalidades, inclusive o gênero neutro, porque considera que os primeiros sinais de violência são justamente o silenciamento e a invisibilização. A educadora elabora atividades que exploram a linguagem neutra e já incorporou em sua fala o gênero neutro. Suas redes sociais são uma extensão da sala de aula. Lá e em sua vida pessoal ela aplica tudo o que sabe a respeito do tema.

Fernanda Rodrigues de Figueiredo
Fernanda Rodrigues de Figueiredo – Foto: Arquivo pessoal

Acho fascinante perceber a pluralidade do mundo e das pessoas. Conversar com as entrevistades me fez ampliar meus horizontes e perceber a delicadeza de cada história e de cada contexto. Esta experiência de pelo menos reflexão sobre o gênero neutro na língua é um passo importante na luta pela dignidade de todes. A língua muda, amigues. Como diz Marcos Bagno, “A mudança resulta, portanto, de fatores de ordem cognitiva e social, tem tudo a ver com o que fazemos da língua a cada momento, a vida toda e, sobretudo, de maneira inconsciente. Defender a mudança linguística, reconhecê-la como inevitável, é defender a própria natureza de tudo o que existe em nós, na sociedade, na natureza e no mundo. Como escreveu o filósofo Heráclito, quinhentos anos antes da nossa era, “panta rhei”, “tudo flui”, e querer impedir o fluxo de tudo é tarefa inglória, ingrata e inútil, além de tremendamente reacionária”. Não sejamos nós impedimentos do fluxo da vida e muito menos da língua!

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Transliterária
Foto: Arquivo pessoal

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Michelle MKO

44 anos, mulher, professora, artista, chargista, projeto de escritora, pisciana , portanto sonhadora e chorona, lésbica e mãe, adoradora de gatos e detestadora de injustiças sociais.

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