A Voz Delas
MULHERES

Mulheres conectadas

Mulheres negras encontram nas redes comunitárias uma maneira de enfrentar à Covid

Por Tuany Nathany

Empregada doméstica, Cleonice Gonçalves foi a primeira vítima do coronavírus no estado do Rio de Janeiro. Ela trabalhava desde os 13 anos de idade na profissão, que mais emprega mulheres no Brasil. Cleonice cozinhava há vinte anos para uma família que mora no Leblon quando passou mal e foi internada. Um dia depois da internação, a patroa, que havia voltado da Itália, comunicou sua família de que estava com covid-19.

Já Mirtes Renata de Souza trabalhava como doméstica e tinha levado seu filho, Miguel, para o trabalho em um prédio residencial de luxo de Recife, já que a creche estava fechada devido à pandemia de coronavírus. Mirtes teve de deixar o menino com a patroa, a esposa do prefeito da cidade, para sair com o cachorro dos empregadores. Contudo, a ‘madame’ não cuidou da criança e não foi atrás quando o menino deixou o apartamento e entrou no elevador à procura da mãe. Miguel chegou ao nono andar onde caiu de uma janela.  

Como os casos de Cleonice e Mirtes se ligam? Além de serem empregadas domésticas, suas histórias exemplificam a realidade das mulheres negras brasileiras durante a pandemia. Somos milhares de mulheres empregadas como babás, domésticas, profissionais da linha de frente da saúde que, mesmo antes da pandemia, já tinham os piores índices de direitos humanos.

Na pandemia, temas como insegurança alimentar, desemprego e/ou tripla jornada passou a serem preocupações recorrentes em nossas vidas. Acontece, que possuímos uma realidade peculiar, marcada pela interseccionalidade de problemas sociais como racismo e sexismo. Situação que faz com que a gente, mulheres negras, tenhamos os menores salários em comparação com homens negros, mulheres brancas e homens brancos (IBGE, 2019). Nós também somos as que mais sofreremos com a violência obstétrica, além disso, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, representamos 61% feminicídios.

Na pandemia, não poderia ser diferente. Velhos problemas sociais, causados por uma estrutura social racista, acabou tornando a população negra mais exposta ao vírus. Araújo e Caldwell (2020) mostram, em um estudo (veja aqui), que em abril o Ministério da Saúde já apontava para altas taxas de mortalidade por covid-19. Segundo dados coletados no mês de maio, em 5.500 municípios, 55% dos pacientes negros, hospitalizados com a doença em estado grave, morreram em comparação com 34% dos pacientes brancos. Saiba mais aqui.

Tripla jornada

Alinhado a isso tudo há ainda a pressão psicológica por dar conta de tudo e se responsável por tudo e todos. Sim, aquela sensação tão conhecida de responsabilidade foi elevado a níveis catastróficos. Segundo dados da pesquisa de Gênero e Número, 41% das mulheres que mantiveram seus trabalhos durante a pandemia afirmaram que passaram a trabalhar ainda mais agora.

Acontece que as mulheres, que mantiveram seus empregos, viram-se às voltas com questões extras de educação, lazer e entretenimento dos filhos, que passaram a ficar em casa com o fechamento das escolas. Além, é claro, da limpeza da casa que passou a ser muito mais constante devido à quarentena e ao próprio método de combate ao vírus.

Como não enlouquecemos? Muitas vezes enlouquecemos, afinal, ninguém está bem e a jornada da mulher negra tem suas peculiaridades que deixam a vida ainda mais difícil. Contudo, nessa pandemia resgatamos nossas origens e passamos a nos reunir em redes virtuais para nos apoiar e ajudar mutuamente.

Segundo Rosângela Hilário, Maria Ribeiro e Valdenia Menegon, em artigo para a Agência Bori, as experiências de mulheres negro-brasileiras da periferia guardam importantes semelhanças com as experiências de mulheres africanas. “As lições do matriarcado africano acenam para o fortalecimento de todas as pessoas vinculadas àquele determinado grupo, inclusive, reforçando a importância da escuta”.

Como funciona? As estratégias incluem pautar um recorte “étnico-racial” na agenda pública, além de reconhecer práticas de sobrevivência implementadas por mulheres negras em seus territórios.

Conectadas

Conheça iniciativas que visam conectar a população negra:

  • Central Única das Favelas (CUFA)

Organização brasileira reconhecida nacional e internacionalmente nos âmbitos político, social, esportivo e cultural. Com duas décadas de existência foi criada a partir da união entre jovens de várias favelas, principalmente negros, que buscavam espaços para expressarem suas atitudes, questionamentos ou simplesmente sua vontade de viver. Tem o rapper MV Bill como um de seus fundadores. Saiba mais aqui.

  • Coalizão Negra por DIREITOS

Grupo que se reúne a partir dos valores da colaboração, ancestralidade, circularidade, partilha do axé (força de vida herdada e transmitida), oralidade, transparência, autocuidado, solidariedade, coletivismo, memória, reconhecimento e respeito às diferenças, horizontalidade e amor. Saiba mais aqui.

  • Rede de Mulheres Negras do Nordeste

Projeto de construção, rearticulação e mobilização das jovens, mulheres e lésbicas negras do nordeste brasileiro, com intuito de estruturar uma rede para fortalecer as organizações de mulheres negras e incidir nas políticas públicas de combate ao racismo, sexismo e lesbofobia. Saiba mais aqui.

  • Feira Preta

Iniciativa que busca valorizar o empreendedor negro. O Marketplace Feira Preta nasceu para levar até os consumidores a multi-pluraridade criativa e cultural afro, por meio de produtos e serviços oferecidos por empreendedores que ajudaram a movimentar o Festival Feira Preta, maior evento de cultura negra da América Latina, que já soma 19 anos de história. Saiba mais aqui.

Foto

Tuany Nathany

Alma curiosa que busca entender os ‘por quês’ e ‘comos’ da vida. Jornalista por profissão e pesquisadora de coração, sou especializada em jornalismo em ambientes digitais e em comunicação pública da ciência. Na pesquisa, e na vida, meus principais temas de interesse são gênero, mulheres na ciência, redes sociais e divulgação de ciência para crianças.

COMENTÁRIOS

OUTROS POSTS DO MESMO AUTOR

COLUNISTAS