Política
impeachment

Essa é a saída?

Tirar Bolsonaro é escolher por colocar um general do exército, da pior estirpe, como Presidente da República.

Por Rúbia Meireles

Um grupo formado por médicos e cientistas protocolaram hoje (08/02/2021) pedido de impeachment  de Jair Bolsonaro, alegando crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente na condução da pandemia do COVID-19. Soma-se a esse, outros  sessenta e oito pedidos de impedimento enviados à Câmara dos Deputados desde que Jair assumiu a presidência. 

A responsabilidade por abrir o processo agora está a cargo de Arthur Lira, novo presidente da Câmara, empossado na semana passada com o apoio de Bolsonaro. A opinião do senso comum é que Lira não aceite nenhum dos pedidos de afastamento.  

O impeachment é apoiado por  nomes conhecidos da esquerda e, também, por grupos com espectro político à extrema direita  como Vem Pra Rua e Movimento Brasil Livre. Para saber se o afastamento do Presidente da República é a melhor saída neste momento, o Portal Gama entrevistou a doutora em Ciências Políticas Maressa Miranda. 

Gama: Há fundamentos jurídicos para um impeachment nesse momento?

Maressa: A primeira coisa fundamental para responder à essa pergunta é diferenciar impeachment (impedimento) de recall (reavaliação). Impeachment é um processo jurídico, cujo fundamento é a prática de crime de responsabilidade (Lei nº 1079/1950). O Congresso Nacional recebe uma denúncia contra um ocupante de cargo público, p. ex. contra o Presidente da República, e, se tiver maioria de votos a favor, a acusação é enviada ao Senado Federal, que a julga procedente ou improcedente. Mesmo sendo um processo que envolve basicamente poderes políticos como a Câmara e o Senado, é um processo jurídico, e só pode acontecer de forma legal e legítima se houver comprovação do cometimento de crimes de responsabilidade.
Isso é diferente do recall porque este é um instituto que autoriza a revogação do mandato de qualquer representante político eleito, por questões eminentemente políticas, como má administração ou insatisfação na condução do governo. Ou seja, a simples insatisfação com o governante não é motivo para impeachment, mas sim para recall.
 
Gama: Recall é um remédio jurídico previsto na constituição brasileira?
 
Maressa: No Brasil o recall não existe, não é previsto na constituição. Então, se tivermos maus políticos e má administração, temos que segurar as pontas e esperar até as próximas eleições. Não podemos banalizar o impeachment e utilizá-lo como se fosse recall sempre que estivermos diante de maus governos e má administração pública. Ser incompetente não é o mesmo que cometer crime de responsabilidade.
Esclarecido isso, volto à pergunta: há fundamentos jurídicos para um impeachment [do Presidente] nesse momento? Bem, se as ações (ou omissões) de Bolsonaro representarem crimes de responsabilidade, conforme previsto na Lei 1079/1950, sim, há crime de responsabilidade. Parece fácil fazer essa definição, mas na prática não é. Por exemplo: um dos crimes de responsabilidade previsto na lei, no art. 9º, 4, é “expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição”. Ora, pode-se afirmar que quando Bolsonaro minimiza, e por vezes ridiculariza, a pandemia do coronavírus, ele atenta contra direitos fundamentais como a saúde pública, ou mesmo a dignidade humana. Mas não necessariamente a fala dele reflete nas ações gerais tomadas pelo Estado brasileiro. Ele fala que a pandemia é “uma gripezinha”, mas o estado de calamidade pública foi declarado, o orçamento foi alterado e direcionado para ações emergenciais relacionadas à pandemia, leis extraordinárias foram sancionadas pelo presidente… Ou seja, não basta alegar o crime de responsabilidade: tem que provar. E ao provar, ao instruir o processo, tudo isso conta, e, em uma análise jurídica, pode-se chegar à conclusão de que não houve crime.
E é por isso que o impeachment é jurídico, mas é também (e, no Brasil, principalmente) político. Porque, no final, indícios e suspeitas podem tomar corpo de provas cabais se a maioria dos parlamentares assim desejarem, e fazer cair os presidentes. Assim foi com o Collor e com Dilma Rousseff.
 
Gama: Rodrigo Maia vem criticando o comportamento do Pr. Jair Bolsonaro no enfrentamento da pandemia de covid-19, enquanto chefe de Estado. Nas últimas semanas, afirmou que não é mais possível aceitar um “presidente irresponsável”. Essa sensação se agravou com a situação dos hospitais de Manaus e o que se vê é uma crescente mobilização nas redes sociais pelo impedimento do presidente. Como você avalia esse cenário, o impedimento seria uma boa saída nesse momento?
 
Maressa:  Voltamos um pouco à resposta anterior. Ao falar que “não é possível aceitar um presidente irresponsável” o sentido de irresponsável é o sentido dado à Lei de Crime de Responsabilidade, ou é o sentido popular de insensato, imprudente ou leviano? Ser insensato, imprudente, ou até mesmo infantil, como é claramente o caso de Bolsonaro, não é o mesmo de cometer crime de responsabilidade. Não estou dizendo que ele não tenha cometido o crime, mas apenas destacando que insatisfação política não é suficiente para justificar um impeachment.
Na minha perspectiva, o problema de se tomar decisões políticas da gravidade de uma deposição do presidente da república em virtude de insatisfação social e mobilização de redes sociais, ainda mais sem a comprovação de crime, é que com isso colocamos em xeque as instituições políticas e jurídicas, e o sistema constitucional em si. O voto popular, o mandato, as garantias constitucionais do cargo de presidente, tudo isso só pode ser superado se houver prova cabal de crime de responsabilidade. Porque são institutos fundamentais para qualquer democracia, não podem ser simplesmente desconsiderados por meio de processos de duvidosa instrução. Foi esse justamente o principal argumento daqueles que chamam o impeachment de Dilma Rousseff de golpe. E agora, estamos dispostos, enquanto sociedade, a mais uma vez colocar em xeque as instituições democráticas para mais um processo de impeachment com cara de recall?
 
Gama: Nos últimos dias ocorreram panelaços pelo País como forma de protesto contra o Presidente. Como você avalia essa forma de manifestação?
 
Maressa: Eu arriscaria dizer que os que puxaram os panelaços dos últimos dias, e das primeiras semanas da pandemia, contra Bolsonaro, são os mesmos que puxaram o panelaço contra Dilma Rousseff em 2016. É a “classe média” pressionada pelo desejo de consumo de produtos e status da “classe alta”, mas que vive apavorada pela crise e pelo empobrecimento que a empurra para a “classe baixa”. São as pessoas que estavam felizes com o Lula quando o Brasil era a 6º maior economia do mundo, mas que aderiram acriticamente ao antipetismo durante a crise política e econômica que começou mais ou menos em 2012 e se arrasta até hoje. É o pessoal que engrossou os votos a favor de Bolsonaro “para tirar o PT”, e que prometeu que se ele fosse ruim, “tirava ele também, como tiraram a Dilma”. Ora, nada mais coerente por parte dessas pessoas do que se comportarem agora exatamente como se comportaram antes: na crise, culpa-se o detentor do poder, e tenta tirá-lo, como se essa fosse a solução (fácil e rápida) para resolver a crise.
O que me impressiona não é o comportamento dessas pessoas, mas sim o fato de que grande parte dos que se consideram “de esquerda”, ou acadêmicos com considerável formação política, ou mesmo lulistas e petistas, engrossam, agora, o coro pelo impeachment de Bolsonaro, na mesma linha de duvidosa legalidade/legitimidade: um impeachment com cara de recall.
 
Gama: Qual o preço de se ter um impeachment atualmente? 
 
Maressa: Além de todos os custos institucionais já falados acima, e além de corrermos o risco de cometer o mesmo erro que foi cometido contra Dilma Rousseff e, assim como ela, dar a Bolsonaro e aos bolsonaristas oportunidades de bradar que o “mito” sofreu um golpe, escolher por tirar Bolsonaro tem um preço ainda mais alto. Tirar Bolsonaro é escolher por colocar um general do exército, da pior estirpe, como Presidente da República. Porque não há outra alternativa no sistema brasileiro: sai o presidente, assume o vice. Aí o General “Mourão-ponderado” assume, termina o mandato gerindo o Brasil melhor do que Bolsonaro (o que não é muito difícil), realiza eleições em 2022, passa o cargo para o eleito, limpa a má fama do exército e apaga de vez o já nublado passado recente de atrocidades praticadas pelo exército na ditadura de 1964-1985. E, o pior de tudo: isso vai acontecer legitimado pela suposta esquerda, por pessoas, pensadores e partidos que há anos insistem na necessidade do direito à memória e na reparação dos crimes praticados na ditadura.
Apoiar um impeachment nesse momento é cair em uma armadilha insuperável: ajudar a desfazer do “pesadelo” que Bolsonaro virou para as elites (econômicas e militares) que o colocaram lá, a favor dessas mesmas elites, que hipocritamente vão se avocar defensoras das instituições e da democracia.
 
Gama: O que seria uma oposição ao Bolsonarismo?
 
Maressa: Não há resposta fácil e rápida para essa pergunta. O que posso afirmar é que Bolsonaro, o “bolsonarismo” é um produto de um fenômeno global, do populismo nacionalista, que produziu figuras como Trump (EUA), Marine Le Pen (França), Viktor Orban (Hungria), e mesmo o movimento do Brexit (Reino Unido). Simplificando, esses governos têm em comum se colocarem à extrema direita, escolherem como inimigos as minorias (movimentos feministas, LGBT, negros e povos originais, imigrantes e refugiados) e as elites tradicionais (políticos tradicionais, imprensa, universidades), que estariam unidos, a partir de valores “marxistas/comunistas/imorais” para “destruir valores tradicionais”, como a família heterossexual pautada pelas religiões tradicionais, a masculinidade hegemônica e a meritocracia.
Essa construção complexa e aparentemente insólita só é possível a partir de uma estratégia discursiva que a jornalista Eliane Brum vem desenvolvendo em suas colunas e colocou bem no Livro “Brasil, construtor de ruínas”: pela manipulação total da linguagem e pela dominação total da pauta da esfera pública: Bolsonaro não é um idiota que fala bobagens. Pelo contrário, ele é muito inteligente, ou muito bem assessorado, o que dá no mesmo, e tudo que ele fala, todos os absurdos que cospe pela boca, é precedido de um cálculo muito bem feito para dominar as discussões tanto da esfera pública mais ampla como das instituições. Inclusive (e principalmente) de quem é oposição ao bolsonarismo. Assim fazendo, ele consegue ter sempre o protagonismo da pauta, e a oposição (seja a real seja a forjada por ele mesmo) fica sendo sempre reativa, nunca propositiva. Todo o discurso fica enredado pela pauta colocado por Bolsonaro e pelo bolsonarismo. E a oposição, capturada pela reação constante, fica paralisada, não consegue construir caminhos, propostas, linguagem alternativa ao bolsonarismo. E ainda cai em umas armadilhas feitas para confirmar o sistema e o autogolpe da elite, como é um caso de impeachment nas atuais circunstâncias.
 
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Rúbia Meireles

Jornalista de formação, é especialista em Marketing e entende tudo sobre pesquisa e comportamento do consumidor. Está sempre aprendendo alguma coisa nova.

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