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Conciliação em domicílio Foto: Arquivo pessoal

Conciliação em domicílio

Projeto piloto estimula a realização, pelo oficial de justiça, de acordos judiciais na casa das pessoas, sem necessidade de se deslocar aos fóruns, beneficiando população carente

Por Denise Rodrigues Alves

Imagine que um conflito entre duas pessoas vire processo e vá parar na Justiça. Isso é muito comum e acontece em casos de pensão alimentícia, cobrança de dívidas, desavença na vizinhança, partilha de bens e tantos outros. Esses problemas podem se arrastar por anos e causar muito desgaste entre as partes envolvidas. E é aí que entra o projeto Conciliação em Domicílio, que está sendo testado em Governador Valadares pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

Com a possibilidade não somente de conciliação, mas também de mediação, agora os oficiais de justiça podem colher as propostas de uma das partes quando forem em seu domicílio e repassar à outra por ligação telefônica, aplicativo de mensagem ou e-mail, sem que ambas tenham a necessidade de se encontrarem. Se surgir uma contraproposta, por exemplo, o servidor mediará os ajustes que forem necessários com o objetivo de resolver o conflito. Depois que as duas partes concordarem com os termos, o oficial certifica o acordo e devolve o mandado para a secretaria. Assim, já segue para a homologação do juiz.

“Profissionais autônomos de baixa renda como faxineiras, motoristas de aplicativos, pedreiros; pessoas que ganham pelo que produzem são beneficiados pelo projeto pois, ao comparecerem as audiências físicas com dia e hora marcada esses profissionais, além de gastar dinheiro com deslocamento e alimentação, também deixam de trabalhar naquele período, tendo uma perda de renda que, muitas vezes, faz falta no final do mês” explicou o oficial de justiça Luiz Antônio Braga de Oliveira.

Um ponto positivo é a possibilidade das partes terem um tempo maior para refletirem sobre uma proposta, uma vez que o oficial de justiça tem o prazo de 20 dias para cumprir as diligências e devolver o mandado. Uma das partes declarou que a ideia foi ótima, pois permitiu que ela não precisasse comparecer a um lugar que não conhece. “Como ele [o oficial de justiça] veio cá, e comunicou com a outra parte, graças a Deus deu tudo certo. É bem melhor desse jeito porque a gente não fica ansiosa, pode raciocinar melhor a quantidade certa que podemos combinar no acordo”, pontuou. 

Conciliação em domicílio
Em um dos acordos, o oficial de justiça Luiz Antônio Braga de Oliveira e as partes ficaram em negociação por cerca de dez dias até definir o valor da parcela que fosse bom para ambas. Foto: Leandro Silva

Outro caso acompanhado por nossa equipe foi o acordo entre uma consumidora e o SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto) de Governador Valadares, que é uma autarquia municipal. O SAAE ajuizou uma ação para recebimento dos valores em atraso. Por meio da mediação do oficial de justiça, foi firmado um acordo que resultou na religação da água da cliente.

 
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O oficial de justiça Ednaldo Armond Coelho acompanhou a religação da água na casa da cliente, no bairro Vitória, em Governador Valadares-MG. Foto: arquivo pessoal

As tratativas para fechar o acordo duraram cerca de uma semana. O SAAE flexibilizou a quantidade de parcelas, o que viabilizou o sucesso da negociação. “A ré é uma pessoa simples e de baixa renda que não possuía nenhuma condição de contratar advogado. Além disso, a falta de água tratada e o uso da água proveniente de um poço raso certamente iria trazer prejuízos a saúde daquela família. Desse modo, a mediação desse acordo me trouxe um sentimento de satisfação pessoal muito grande, uma vez que a ré teve o seu fornecimento de água reativado sem mesmo ter que sair de sua residência, portanto, sem nenhum gasto adicional”, comentou o oficial de justiça, Ednaldo Armond Coelho

“Eu pude perceber que essa forma de conciliação traz uma celeridade processual imensa. Muitas vezes, a pessoa vem aqui na autarquia ou até mesmo vai até a audiência de conciliação sem compreender sobre o que de fato versa o processo e esse modelo de conciliação feito pelo oficiais de justiça traz  uma confiança por parte da população e proporciona uma aproximação do poder judiciário e do SAAE da população, porque afinal de contas o interesse do SAAE quando resulta no ajuizamento de ações é de recuperar os créditos vencidos, mas é claro que neste processo temos que observar a condição do cidadão”, declarou Renan Oliveira Faula, assistente de administração lotado na Assessoria Jurídica – SAAE/GV.

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O oficial de justiça Ednaldo Armond Coelho, Renan Oliveira Faula da assessoria jurídica e demais funcionários do SAAE estiveram no local para religação da água em 13 de abril de 2021. Foto: Arquivo pessoal

A conciliação não é novidade, o que se apresenta inovador é a forma como está sendo feita. O Código de Processo Civil, sancionado em março de 2015, já traz no art. 3º, § 2º, diz que “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”. O CPC/2015 também estabelece que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

Em Governador Valadares, sete oficiais de justiça participam do projeto-piloto: Alessandro Viana Lessa, Cláudia Cristina do Nascimento, Leia Silva de Araújo, Pedro Américo Abrantes Nascimento, Robson Luiz de Alcântara, além dos oficiais que concederam entrevista ao portal Gama nesta matéria, Ednaldo e Luiz Antônio. A adesão dos oficiais ao projeto-piloto é voluntária.

 
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Conciliação realizada na comunidade do Nicolau, na zona rural de Governador Valadares, no leste de Minas Gerais. Foto: arquivo pessoal

Conhecendo detalhes do projeto

Para entender mais sobre esse novo método de solucionar conflitos consensualmente, fizemos uma série de questionamentos ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O projeto é coordenado pelo 3ª Vice-Presidente do TJMG, o desembargador Newton Teixeira Carvalho, tendo o acompanhamento da Assessoria da Gestão de Inovação (AGIN), órgão que compõe a estrutura da referida vice-presidência. Confira:

Portal Gama: O que é a “Conciliação em Domicílio”?

TJMG: A “Conciliação em Domicílio” apresenta-se como nova ferramenta, dentre outras, adotada pelo Tribunal de Justiça Mineiro, na solução consensual de conflitos. É um projeto inovador que tem o intuito de contribuir para a agilidade da resolução de conflitos e, consequentemente, para a prestação jurisdicional com qualidade e eficiência. O projeto consiste, em síntese, na possibilidade do Oficial de Justiça atuar como parceiro da conciliação quando do cumprimento dos mandados judiciais, permitindo às partes firmarem acordo sem a necessidade de se deslocarem até o fórum. Assim, havendo interesse da parte, o Oficial colhe a proposta de autocomposição e, em seguida, certifica a proposição recebida. Posteriormente, sem a necessidade de que o Mandado retorne à Secretaria, o Oficial entra em contato com a parte contrária ou, em sendo o caso, com o seu advogado, para intimá-los da proposta formulada, conforme prevê o parágrafo único do artigo 154, do CPC/15, e certifica a aceitação ou a recusa da proposta. Caso a proposta seja aceita, essa informação será repassada ao proponente e o acordo seguirá para homologação pelo juiz competente. O Oficial de Justiça poderá entrar em contato com as partes via telefone, e-mail ou WhatsApp.

Portal Gama: Quando começou?

TJMG: O projeto foi oficialmente apresentado durante a abertura da “XV Semana Nacional da Conciliação” em Minas Gerais, no dia 30/11/2020, na sede do Tribunal de Justiça. O projeto foi idealizado pelo Oficial de Justiça, Luiz Antônio Braga de Oliveira, em conjunto com a 3ª Vice-Presidência do TJMG, por intermédio da Assessoria da Gestão de Inovação (AGIN). Teve início no dia 1º de dezembro de 2020, com a publicação da Portaria Conjunta nº 1092/PR/2020, na Comarca de Governador Valadares, escolhida como pioneira por ser onde está lotado o servidor edificador da medida. O projeto também conta com o apoio da Corregedoria Geral de Justiça, como também da Direção do Foro da Comarca de Governador Valadares.

Portal Gama: Como surgiu a ideia?

TJMG: Cabe salientar que essa atuação do Oficial de Justiça como facilitador de um acordo judicial está prevista no novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015). Portanto, a partir dessa previsão legal é que o projeto foi apresentado pelo servidor Luiz Antônio Braga de Oliveira à 3ª Vice-Presidência do TJMG, em agosto de 2020, recebendo, a partir daí, o incentivo do Tribunal para integrar o PROJEF, que é o projeto Justiça Eficiente, lançado pelo TJMG através da Portaria Conjunta nº 1.024/PR/2020. Em outubro de 2020, após esforços mútuos, foi finalizada a minuta do projeto “Conciliação em Domicílio”, nos moldes como se apresenta hoje.

Portal Gama: Quais são as vantagens?

TJMG: Mostram-se como vantagens do projeto “Conciliação em Domicílio”:

– Menor onerosidade para as partes;

– Maior celeridade processual;

– Maior cobertura territorial do serviço;

– Menor dependência de parcerias com setores públicos ou privados para a execução dos atos judiciais;

– Impacto direto sobre o acervo de processos judiciais;

– Impacto direto sobre a produtividade dos magistrados e servidores do Judiciário;

– Economia financeira para o Judiciário;

– Menor disseminação do COVID-19.

Portal Gama: Quais as principais dificuldades?

TJMG: Equacionar as práticas dos atos de execução do projeto dentro de uma única diligência do Oficial de Justiça, bem como a questão relacionada à eventual transposição da área de atuação territorial daquele mesmo Oficial.

Portal Gama: Qual o público será mais beneficiado?

TJMG: O público mais beneficiado, a curto prazo, acreditamos ser os litigantes em causas de baixo valor e de menor complexidade, por se apresentarem mais propensas a acordos. A longo prazo, todos aqueles que demandarem o Judiciário serão beneficiados.

Portal Gama: A “Conciliação em Domicílio” pode ser feita em qualquer tipo de processo judicial?

TJMG: Em um primeiro momento o projeto-piloto atenderá processos envolvendo pensão alimentícia (art. 528 do CPC/15), execuções cujo valor seja inferior a 05 (cinco) salários mínimos e casos de citação para audiência relacionados à lei de alimentos. Sem prejuízo dessa fase de teste do projeto, que deverá ao final ser ampliado, qualquer processo que trate de direito disponível pode ser solucionado por meio de um acordo judicial, cuja proposta pode ser levada diretamente ao oficial de justiça, ao advogado, ao juiz ou ao promotor de justiça.

Portal Gama: Por que o projeto piloto está sendo em Governador Valadares?

TJMG: Estamos prestigiando a comarca onde nasceu a ideia, onde ela foi acolhida pela Direção do Foro, pelos servidores e pelos advogados. Ao final, pretendemos oferecê-lo a todas as comarcas do Estado.

Portal Gama: Tem prazo final do projeto-piloto?

TJMG: A portaria conjunta nº 1163/PR/2021 prorrogou o prazo da execução experimental até o final do mês de maio, quando avaliaremos seus resultados e decidiremos sobre sua continuidade.

Portal Gama: Há expectativa de implantar em outras comarcas?

TJMG: Após as análises e mensurações do projeto-piloto será apresentado um relatório à Presidência, conforme prevê a Portaria 1092/PR/2020. A partir desse relatório será possível avaliar a sua expansão.

Portal Gama: O projeto vai ajudar a reduzir morosidade dos processos?

TJMG: Não nos cabe questionar a morosidade processual sem questionarmos, simultaneamente, as causas dessa morosidade, que são várias, passando, por exemplo, pela burocracia dos procedimentos legais, pela necessidade de informatização do Poder Judiciário e pela cultura do litígio, que é arraigada em nossa sociedade. Por essa cultura de litígio aceitamos como razoável entregar a um terceiro (o juiz) a solução dos nossos problemas sociais, quando deveríamos recorrer sempre e inicialmente ao simples diálogo com a outra parte. Pensamos, assim, que o enfrentamento da morosidade da Justiça também passa pela mudança de comportamento social, cabendo ao Poder Judiciário oferecer ao cidadão alternativas de condutas para a solução de seus litígios. O projeto Conciliação em Domicílio é uma dessas alternativas que, certamente, nas causas em que ele for exitoso, resultará na celeridade processual, partindo direto do ajuizamento da ação para a homologação do acordo.

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Denise Rodrigues Alves

Sou jornalista, advogada e mestranda em Gestão Integrada do Território pela Universidade Vale do Rio Doce, no leste de Minas Gerais. Sou natural de Nanuque e moro em Governador Valadares. Gosto de ler e de pesquisar.

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