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Ohhh Minas Gerais! Foto: internet

Comendo em Minas Gerais

“Na minha casa a comida era muito mais que simplesmente um ato de suprir as necessidades fisiológicas”. Bora ter um dedim de prosa sobre culinária mineira com o chef Flávio Trombino e entender o que ele quis dizer.

Por Paloma Chierici

Ohhh Minas Gerais! Foto: internet

Antes mesmo de saber a que se referia o Chef Flávio Trombino com esse “muito mais” que ele disse na entrevista que fiz com ele, eu já fui percebendo o que a expressão significava, ao entrar pelo restaurante dele, o Xapuri, tradicional restaurante de culinária mineira aqui em Belo Horizonte. Foi uma mistura tremenda de sensações que, por um minuto, fechei os olhos e o cheiro do lugar me transportou para Nelson de Sena, um arraialzinho da cidade de São João Evangelista onde meu pai nasceu e onde eu ia passar as férias quando era criança. Lembrei-me do sabor das quitandas que a Ná fazia para a gente, da carne de lata que eu amo até hoje, das conversas em volta do fogão a lenha… ahhh a comida feita num fogão a lenha, única que fala, né?

Mas é hora de abrir os olhos e voltar para a realidade, quando fiz isso, a decoração do ambiente me levou para um sem-fim de cidades mineiras. Desde aquelas que vamos nas excursões da escola até aquelas às quais levamos os amigos turistas para conhecer mais da nossa cultura. E sem falar que, a cada prato que eu via sair da cozinha, minha boca salivava… e olha que eu havia acabado de almoçar em casa para não correr o risco de fugir da dieta. Eu ali sentada sem saber se cheirava, se olhava, se comia, se tocava nas coisas ou se ouvia a música que tocava, estava tão ocupada utilizando todos os meus sentidos que, quando o chef chegou para que eu o entrevistasse, fiquei uns segundos perdida, sem fazer onde estava e o que fui fazer ali. Definitivamente, a comida é muito mais que simplesmente um ato de suprir as necessidades fisiológicas de comer. Entendi!

Voltando para a realidade, este texto não é um publipost. A ideia de falar sobre comida veio de duas das paixões que tenho: viajar e comer. Geralmente, viajar para mim é comer. Comer é experimentar a cultura de determinado lugar da forma mais deliciosa que existe. Por esse motivo, este texto está na editoria de turismo. Assim, eu, uma amante de viagens e de comidas, inspirando-me em um dos meus chefs favoritos, o inesquecível Anthony Bourdain, tomei como lema uma frase dele: Viajo, escrevo e como. E tenho fome por mais.

Na minha fome por mais, decidi escrever sobre os pratos mais incríveis que já comi, dos países que já conheci, com as viagens que fiz. A intenção é focar na culinária da América Latina, mas não excluo a possibilidade de falar sobre outros quitutes, porque, afinal, esta que vos escreve é uma comilona de carteirinha e, se recordar é viver, quero viver recordando essas experiências gastronômicas e descobrindo muitas outras se o Corona assim o permitir.

Começando esse meu turismo gastronômico de lembranças, não poderia começar por outro lugar que não fosse o meu próprio país. Afinal, todas as minhas sensações estão pautadas na minha cultura, na cultura que aprendi no lugar onde nasci. Vamos falar sobre a comida do Brasil. Desculpem-me o bairrismo, mas sou mineira. Amo meu estado! Como uma boa mineira, demonstro afeto e carinho, cozinhando para meus amigos. Gosto de mesa farta, casa cheia e o silêncio daqueles que não podem falar, porque estão saboreando uma boa comida. Sendo assim, vamos falar sobre a gastronomia de Minas Gerais, este estado diamante, como diz a canção.

Para me ajudar a entender mais sobre o assunto, meu guia foi um especialista que eu já disse quem é, sempre dou spoiler. O chef Flávio Trombino me recebeu recentemente no restaurante dele, o Xapuri, e proseamos sobre a culinária mineira, essa confluência de tudo o que é bom e mais um pouco. Ahhh, e para você que é turista, tem até dica de o que comer estando 1 dia em Minas Gerais. Mas se eu fosse você, ficaria mais de um dia por aqui, porque você vai passar bem demais da conta! Ohhh trem bom nossa comida! Espia só nossa prosa.

Chef Flávio Trombino. Foto: internet

Quando o senhor começou a cozinhar? E por que a culinária mineira?

Comecei a cozinhar muito novo, porque, na minha casa, a comida era muito mais que simplesmente um ato de suprir as necessidades fisiológicas de se alimentar. Sentar à mesa é praticamente um ritual, tanto por parte do meu pai, que era mineiro de tradições e de origens de fazendas do interior de Minas, quanto da minha mãe, que era de origem italiana. Para os imigrantes que vieram da Itália, a mesa também era um ambiente sagrado. A mesa é onde há as convivências sociais, onde há as conversas, onde a família se congrega mesmo. Isso, na minha casa, sempre foi muito natural e eu, desde criança, gostei muito de comer, eu era muito comilão, e sempre me virei, espelhado nos exemplos dos meus pais.

O que a culinária mineira tem de tão especial?

Primeiro a diversidade, porque nosso estado tem mais de um bioma, então, naturalmente, temos uma diversidade maior. Há outros estados que têm a gastronomia e a cultura muito fortes, mas muito calcados em um bioma só. Você vai para o Pará e encontra uma gastronomia fenomenal que está calcada só no bioma da floresta amazônica e nós não, nós temos o cerrado, nós temos a restinga, nós temos mata atlântica. Então, essa diversidade é um dos motivos de a culinária mineira ser tão especial. E sem falar que, de alguma forma, ela se identifica com os outros estados também, por ter essa diversidade. Assim, vamos ter algumas coisas que vão se identificar com a cultura goiana, com a cultura baiana, com a cultura capixaba, com a do Rio de Janeiro, por permear por essa diversidade toda.

Chef, eu estava viajando aqui entre o cheio, o ambiente, a comida. Viajei à minha infância e todas aquelas sensações das férias no interior de Minas. A culinária é capaz de ativar essas memórias?

Com certeza! E eu costumo falar com o pessoal que lida diretamente com o público aqui no restaurante, que o nosso negócio não é vender comida, nosso negócio é vender experiências gastronômicas, vivências. A pessoa não vem aqui somente para comer, é o que você falou, ela vem por causa da música, do ambiente e de tudo isso. É lógico que a comida é o fio condutor mais importante disso tudo. A comida tem que ser boa, tem que ter uma representatividade, mas não é só isso. A comida mineira tem esse poder. O que faz a comida mineira ser tão procurada, além da nossa diversidade, é o nosso acolhimento. É uma comida afetiva, uma comida que abraça. Há alguns anos, a Secretaria de Turismo de Minas Gerais fez uma pesquisa com os viajantes no aeroporto que estavam retornando. Eles tinham que responder 3 coisas que mais os impactaram na visita ao estado e 99%, pelo menos em uma delas, citou a gastronomia.

Ohhh trem bão! Foto: divulgação Xapuri

Quais os ingredientes que nunca faltam na culinária mineira?

Na comida mineira não pode faltar alho e cebola. É a base do nosso tempero. Lógico que nós temos uma variedade enorme de temperos, de ervas, mas o que não pode faltar é cebola e alho. E amor em primeiro lugar.

Qual o sabor de Minas?

Eu acho que é isso, é o sabor de casa de mãe, de casa de vó. É sabor de aconchego, de porto seguro.

O que influenciou efetivamente a culinária mineira?

Primeiro, foi uma cultura construída na escassez. Poderíamos dizer que a gastronomia mineira se divide em dois momentos. No momento do descobrimento, da exploração. O surto do ciclo do ouro, a cozinha de tropeiro, que é uma cozinha mais seca, com forte presença das farinhas, dos feijões das carnes secas, das carnes de lata conservadas na banha de porco. E num segundo momento, quando o homem se assenta,  vem o galinheiro, vem o pomar, vêm as frutas e os doces em compota, quando vêm as comidas mais caldosas como a feijoada e o frango com quiabo. São esses dois momentos importantes para a culinária mineira. E ela foi construída, no início, na cozinha de tropeiro, com base na escassez, porque o estado se popularizou muito com essa corrida pelo ouro, o centro do Brasil virou Minas Gerais, e não tinha produção o suficiente para alimentar tanta gente. E sem falar do desconhecimento dos produtos originários daqui, muitas vezes, o sertanista, o bandeirante passavam fome debaixo de um pé de fruta, sem saber que era comestível.

E como essa culinária que vem da escassez se transforma em alta gastronomia?

Essa vocação do estado para receber, essa receptividade e hospitalidade facilitou e proporcionou o recebimento de culturas externas. Não somente a portuguesa e a africana, a capital Belo Horizonte sofre uma influência muito grande de italianos e árabes, por exemplo, e isso, junto dos nossos produtos, desenvolveu a nossa gastronomia ao longo desses 300 anos de história. Então, nós, por necessidade e por essa vocação, absorvemos a cultura de todos os lugares. Por exemplo, a técnica da tradicional panela de pedra sabão de Mariana ou de Ouro Preto, que é tão conhecida nacionalmente e ótima para fazer tutu de feijão, veio da Itália, que é o único lugar que tem essa mesma jazida de pedra, só que lá, eles não preservaram a cultura de fazer panelas, hoje eles fazem somente lareiras, mas é algo externo que absorvemos e virou uma tradição por aqui.

Curioso que absorvemos tudo isso, mas não perdemos nossa identidade. Usamos ingredientes que colhemos no nosso quintal e fazemos uma culinária que se destaca no país todo. Falando nisso, como está, atualmente a divulgação da culinária mineira?

Podemos dizer que saímos na frente. Primeiro em não ter vergonha do que é nosso, porque a nossa origem alimentar é a mesma origem paulista, dos bandeirantes e dos sertanistas, só que o paulistano teve vergonha e renegou isso, eles chamavam de caipira de uma forma pejorativa, e nós nunca nos envergonhamos de ser caipiras. Nunca tivemos vergonha do nosso frango com quiabo, do nosso angu. Sempre tivemos orgulho disso, então, acho que saímos na frente desde os primórdios quando reconhecemos como nosso, quando nos orgulhamos do que é nosso. Isso já nos facilita a divulgação da nossa cultura. Depois, o próprio estado reconhece que isso é um grande viés socioeconômico. Como eu citei, a pesquisa foi usada justamente para identificar o que são os nossos atrativos. E realmente foi identificado que gastronomia é cultura, é turismo e é lazer. Com isso, surgiram movimentos e projetos para difundir e desenvolver nossa gastronomia.  Um deles, a criação do dia da gastronomia mineira, 5 de julho. Hoje em dia, já existem política públicas nessa área, porque o estado já reconheceu a gastronomia como cultura. Outras iniciativas foram os tombamentos de produtos como patrimônios, como o queijo da Serra da Canastra, o queijo do Serro e isso tudo vem colaborando para o nosso desenvolvimento em difundir a nossa cultura.

O que há de turismo gastronômico no nosso estado?

Há alguns circuitos como o do queijo na Serra da Canastra, o da cachaça em Salinas, o do azeite no sul de Minas, na Mantiqueira, o da jabuticaba em Sabará. Há também os festivais como o de Tiradentes e trabalhos pontuais de algumas cidades que exploram isso, por exemplo, Piranguinho é a cidade do pé-de-moleque. É um trabalho intenso em relação a isso, ainda estamos em construção de muitas coisas. Muito foi interrompido pela pandemia. Belo Horizonte conquistou o título de cidade criativa pela Unesco, e uma muitos trabalhos foram paralisados, mas estavam em processo para a implementação e exploração disso, difundindo internacionalmente a nossa cultura gastronômica.

Chega de foto! Foto: divulgação Xapuri

E qual bebida harmoniza com a comida mineira? Cachaça e café?

Podemos dizer que a comida mineira pode ser harmonizada com qualquer bebida. Mas hoje nós temos nossa grande referência o café e depois a cachaça. Hoje a gente tem um polo cervejeiro bem importante em BH e Nova Lima. Além dos vinhos do sul de Minas, onde vem sendo feito um trabalho que desenvolve técnicas novas de vinificação, uma delas eles chamam de poda invertida, na qual fazem as etapas da vinificação diferentemente do que é feito na Europa, por causa das nossas estações. E foi um projeto que deu super certo, encabeçado pelo Universidade Federal de Lavras, e que teve resultado com alguns vinhos ganhando inclusive premiações internacionais.

Tudo aqui dá certo, né?

O Brasil é muito rico! E em Minas, como eu disse por causa dessa diversidade também, temos condições de ter o que há de melhor.

E o calor nem atrapalha a disfrutar uma boa comida mineira, porque é uma comida que sustenta e a cachaça esquenta bem.

Claro que não. Inclusive podemos fazer drinques super refrescantes com a cachaça e o café. Temos muitas possibilidades. E é o que a nova geração, os novos chefs e os novos bartenders vêm trabalhando também, criando, inovando, mas sem perder a nossa tradição e nossa origem. Temos culinária mineira por muito tempo ainda. Veja o exemplo do chef Leo Paixão cujas as receitas viralizaram durante a pandemia e a participação dele no programa de televisão da Globo, “Mestre dos Sabores, mostrou que Minas não é só tutu e lombo de porco, que a gente tem espaço para muita coisa, mas realmente sem perder a nossa essência, sem perder a nossa tradição. Isso pode se comunicar sem conflito, o tradicional e o novo podem caminhar juntos.  

Um turista que vem a Minas Gerais e tem só um dia para fazer uma refeição completa: café da manhã, almoço e janta. O que ele tem que comer para ter uma boa experiência gastronômica?

Ele tem que comer pão de queijo com café, isso não pode faltar. Lógico que no café da manhã vai ter quitandas e mais um monte de coisas, mas o que não pode faltar é café e pão de queijo. No almoço, não pode faltar feijão, angu e couve. Por que eu citei esses três elementos? Porque eles são título do livro do Eduardo Frieiro, escritor mineiro que descreve a cultura alimentar do mineiro e suas origens, e o dia do aniversário desse autor, 5 de julho, foi escolhido para ser o dia da gastronomia mineira. Então, essa é a base alimentar do mineiro. E à noite, não pode faltar torresminho e cachacinha para esquentar. A cachaça é nossa bebida típica, nós temos uma região que é certificada em indicação geográfica que é a região de Salinas. Assim, eu diria que, à noite, não pode faltar essa iguaria.

Fica a dica: só vem a Minas e bom apetite!

Foto

Paloma Chierici

Jornalista, professora e mãe de pet. Ama viajar e a liberdade que isso lhe proporciona. Dá aula de espanhol e português há mais de 1 década. Como jornalista, trabalhou em televisão, em empresas e em revistas.

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