Top 1 em espanhol

E a Anitta, hein? A Anitta apareceu no Jornal Nacional, e em mais um monte de noticiários, fez o Bonner virar meme e lavou a alma da mulher latina, brasileira e favelada! Não me lembro de ter visto um artista virar notícia assim no telejornal mais assistido da maior emissora do país. Já sei o porquê da minha falta de memória, é porque ela é a primeira brasileira a conseguir esse feito.

Se você ama ou é daqueles que faz questão de dizer “eu não escuto Anitta”, apesar de não dizer que não lê Bauman, achando que um é mais “cultura” que o outro, com certeza deve ter conhecimento de que, nesses últimos dias, a cantora brasileira conseguiu um feito histórico: chegar ao top 1 do Spotify Global.

Confesso que há muito eu não sentia os brasileiros tão engajados em algo como aconteceu com a mobilização para colocar Anitta neste primeiro lugar. E digo mais, como foi bom vê-la alcançar esse posto, serviu para lavar a alma um pouco. A gente vive um momento trágico no Brasil, gasolina a quase 8 golpes, digo, reais, carne caríssima e sem poder recorrer ao ovo que está igual. Frutas e verduras pela hora da morte, mesmo sendo um país onde tudo que se planta dá. Isso sem falar que, mesmo comprando comida, fica difícil cozinhar, haja vista o valor do gás de cozinha. Se você mora aqui, deve ter percebido, também, a quantidade de pessoas vivendo nas ruas dos grandes centros urbanos brasileiros… enfim, efeitos colaterais de ter apertado 17 na urna em 2018, parabéns aos envolvidos! Com isso, ver uma brasileira triunfar neste momento acalenta um pouco nossos coraçõezinhos maltratados.

E mais que uma brasileira, Anitta levanta a bandeira da mulher latina em geral. Mulheres que são tidas sempre como fáceis e interesseiras. Muitas vezes, somos tratadas como objeto. Ela, dona e proprietária da própria carreira, saindo de uma das favelas do Rio de Janeiro, cantando e fazendo o que quer, a sua cultura, o que vive, vê e sente, mesmo isso sendo chocante para o carioca que vê o aviãozinho pousar e um barquinho a navegar no azul do mar do Leblon ou de Ipanema. Anitta sambou na cara dos hipócritas e chegou lá, porque mereceu… e vez por onde, apesar das adversidades, né? Ela, muitas vezes, é criticada, afinal, o mundo machista em que vivemos não está preparado para a autenticidade de uma mulher.

No entanto, parece que as coisas estão mudando. “Envolver”, música em espanhol que levou a artista brasileira ao top 1 do Spotify, tem um eu lírico segura de si e que dá um ultimato no caboclo e não fica esperando ser conquistada. É ela, e não ele desta vez, que vai tocar o terror e ele não vai aguentar nem 5 minutos. É ela, e não ele, que quer sexo casual e está tudo bem, e por que não estaria? Por ser mulher?

Outro soco no estômago da tradicional família brasileira que “Anira” deu foi o fato de que sua maior conquista se deu com uma música cantada em espanhol. Pois é, leitor querido, foi cantando em língua espanhola que ela chegou lá. Essa mesma língua considerada, por muitos, como “lengua roja” – língua vermelha -, ou seja, língua de comunista, língua de pobre. Considerado um idioma fácil, que não há necessidade de pagar para aprender, porque todo brasileiro sabe falar, é só colocar a língua entre os dentes e ditongar todas as palavras. Língua que é, simplesmente, um português mal falado….

Vai nessa, bobão! Vai achando que espanhol é fácil. Anitta leva anos estudando para poder cantar em espanhol e, por mérito, conseguiu entrar nesse mercado tão fechado para brasileiros. Minha memória é ruim e só consigo lembrar de dois brasileiros que conseguiram fazer sucesso cantando em espanhol, Roberto Carlos, famoso até hoje, e Alexandre Pires, que fez sucesso por uns 2 anos. Até os irmãos queridinhos Sandy e Júnior fracassaram nessa tentativa. Anitta conseguiu!

Anitta conseguiu e mandou um recado: o espanhol te abre portas e te faz conquistar o mundo! Ao contrário do que o governo atual do Brasil pensa. No mesmo mês que uma brasileira conseguiu o auge de sua carreira cantando em espanhol, o Ministério da Educação retirou o idioma da prova do ENEM. Sim, a partir de 2024, a língua espanhola não será mais uma opção de língua estrangeira na prova do Exame Nacional do Ensino Médio. Em 2017, eles já tinham derrubado a lei de 2005, criada por Lula, que obrigava o ensino de espanhol em todas as escolas brasileiras, pensando em todas as oportunidades que ele poderia nos proporcionar.

Regredimos, voltamos à nossa atitude de colonizados e pensamos que só o Norte deve ditar regras, inclusive linguísticas. Só o que vem do Norte é bom e devemos nos inspirar nele. Mas, como diria o artista uruguaio Joaquín Torres García, o nosso Norte deve ser o Sul. E Anitta nos fez acreditar que se pode lutar contra esse imperialismo cultural machista e ganhar! Anitta nos mostrou que mulher pode estar no top 1 de qualquer coisa e que a língua espanhola não é só “lengua roja”, é língua de conquista. Faça como Anitta, lute como uma mulher latina!

Paloma Chierici

Jornalista, professora e mãe de pet. Ama viajar e a liberdade que isso lhe proporciona. Dá aula de espanhol e português há mais de 1 década. Como jornalista, trabalhou em televisão, em empresas e em revistas.