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Saúde mental no Enem

“Não é a primeira vez, dentro do governo Bolsonaro, que o tema de redação expõe alguma falha do governo”. Confira a análise da professora Jana Rabelo sobre o tema da redação do Enem 2020.

Por Paloma Chierici

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Pandemia, adiamento, pedidos de mais adiamento, recorde histórico de abstinência… são algumas situações que resumem como foi o primeiro dia de prova do Enem 2020. Em meio ao caos, estudantes que se prepararam há mais de 1 ano por esse momento responderam questões relacionadas a Ciências Humanas e a linguagens, além de escreverem uma redação. Ahhh, a redação do Enem! Difícil demais, gente! E olha que, parte do meu orçamento mensal vem de corrigir redações de estudantes que vão fazer a prova no fim do ano. Além de jornalismo, estudei Letras também. Mas, sinceramente, pensando na pessoa que eu era aos 18 anos, não sei como eles conseguem escrever um texto que exige tanto conhecimento e análise crítica.

Bom, reflexões a parte, adivinhar o tema da redação é o sonho de 9 em cada 10 candidatos. Alguns professores, depois da prova, claro, chegam a afirmar que adivinharam. Mas muitos não entendem que o importante mesmo é se preparar para conseguir produzir um texto crítico e próprio. Mas falando em tema, o Enem 2020 abordou o seguinte: “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”. Tema tão necessário e pertinente que, por um segundo, pensei que o MEC (Ministério da Educação) não estivesse, atualmente, submetido ao governo Bolsonaro.

Digo pertinente e necessário, porque aflige grande parte, não só da população brasileira, como mundial. Aqui mesmo no nosso Portal, tivemos os relatos desgarradores e sinceros da nossa companheira e editora chefe Ana Paula sobre a depressão pela qual passou e o tratamento constante que deve fazer (leia aqui). E essa não é uma situação que acontece apenas com a Ana que, felizmente, consegue ter ajuda e apoio profissional e familiar. É algo que acontece com muitos, entre esses muitos, os mais jovens, provavelmente, candidatos a uma vaga nas universidades que fizeram ou farão o Enem.

Sobre o tema da redação do Enem 2020, conversei com a deusa sem defeitos (como dizem os jovens), professora de Linguagem, Redação e Atualidades, Jana Rabelo. Ela fez uma análise do tema, além de discutir o assunto tão presente na nossa sociedade, não só atual, mas passada também, e foi categórica: “nós somos limitados e restringidos a corpos que produzem para o sistema capitalista e nós não somos só isso, somos muito mais que isso! E é óbvio, somos seres humanos completos e complexos e isso vai conduzir um adoecimento físico, mental e social”. Jana também fez uma declaração de amor à Eliana Brum, sua escritora favorita. Então, faço um apelo, você que está lendo este texto, compartilhe e marque a Eliana Brum para que essa declaração chegue a ela. Mas, acima de tudo, meu apelo maior é: leia esta entrevista, sendo candidato ou não ao Enem 2020, o que a Jana diz e a discussão que o Enem propôs é de extrema relevância para nossas vidas.

Jana Rabelo, professora de Linguagem, Redação e Atualidades. Foto: Arquivo pessoal

Alguma surpresa no tema escolhido para a prova de redação do Enem 2020?

Não esperávamos que caísse um tema na área de Saúde Mental, considerando que o Governo Federal foi muito criticado pelo sucateamento da política nacional de saúde mental.  A mídia brasileira divulgou os planos do governo de revogar uma série de decisões de promoção de saúde mental. Entre as portarias que seriam revogadas estão as que regulam o programa anual de reestruturação da assistência psiquiátrica hospitalar, as equipes que trabalham no Consultório na Rua, o Serviço Residencial Terapêutico e a Comissão de Acompanhamento do Programa De Volta para Casa. A Associação Brasileira de Psiquiatria chegou a se pronunciar, e criticou a medida do governo: “A ABP defende a nona Política Nacional de Saúde Mental, votada na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) do SUS, com representação dos governos estaduais e municipais, publicada em dezembro de 2017. Vale ressaltar que tais mudanças, que completam três anos agora, precisam ser amplamente implementadas para que a desassistência aos pacientes com transtornos mentais seja finalizada”, afirmou em nota.

Dá para adivinhar qual vai ser o tema da prova de redação?  

Eu acredito que não, porque o tema é decidido entre um grupo de profissionais. Eu acho que, além de ser praticamente impossível, é improdutivo. Um professor que trabalha adequadamente prepara o aluno não para o tema, mas para desenvolver as habilidades necessárias para escrever um texto dentro dos limites do texto argumentativo-dissertativo, com autoria, com as estratégias argumentativas adequadas e com o repertório sociocultural adequado. Então, o bom trabalho de redação não passa em preparar para o tema, mas desenvolver, acima de tudo, uma análise crítica da realidade.

Qual a importância de se discutir sobre as doenças mentais atualmente na sociedade brasileira.

Eu acho um tema imprescindível. Primeiro, por causa de uma frase que estava na frase temática, que é a palavra “estigma”. As doenças mentais são uma realidade histórica, porque faz parte da essência humana apresentar esse adoecimento. E isso tem piorado nos últimos anos devido a uma série de fatores como a ascensão das redes sociais, as diversas pressões por alto desempenho em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo e elas enfrentam um estigma, um preconceito social muito grande que é a psicofobia. E uma prova como essa, de proporções nacionais, abordar esse tema faz, na verdade, obriga que a sociedade discuta o que é saúde mental, quais são as doenças mentais e, acima de tudo, o problema de se negar a existência dessas doenças ou de se negligenciares essas doenças. E quando um tema como esse aparece na prova, força professores, alunos, familiares       e mídia a reconhecerem a existência do problema, discutirem e isso, direta ou indiretamente, leva informação para muita gente, principalmente, um público que tem apresentado uma doença mental com muita frequência, que são os adolescentes e os jovens, que já passam por um momento bastante instável na vida de formação da identidade, de cobranças e de pressões e que, na sociedade contemporânea, ainda têm que viver com um outro gatilho que são as redes sociais que vários estudos já demonstraram que podem ser extremamente negativas se utilizadas de uma maneira irrefletida e descontrolada  

Quais os grandes estigmas que você acredita que as pessoas com doenças mentais sofrem no Brasil?

Infelizmente, e a gente vê isso até em discursos oficiais, a questão da saúde mental é vista como “frescura”, um “mimimi”, um sinal de fraqueza                das novas gerações, sendo que é um problema histórico. Sempre houve a doença mental! Além disso, a gente ainda tem um discurso brutalizador: a saúde metal como um desajuste do indivíduo à sociedade. E, por último, a gente vê a multiplicação de um discurso religioso, muito perigoso, que liga a saúde mental à possessão demoníaca ou à intercessão de espíritos negativos. E a conjunção de todos esses estigmas faz com que os indivíduos que apresentam alguns dos seus sintomas, com uma certa frequência, neguem a existência desses sintomas e neguem a procura ou a oferta de ajuda profissional e qualificada. E, infelizmente, com uma certa frequência, o indivíduo que tem a doença mental ou um transtorno ou uma síndrome encontre outra válvula de escape, por exemplo, o abuso de drogas, o abuso de álcool, o comportamento sexual irresponsável, entre outros elementos que podem piorar o que já é uma situação muito complicada.

Você acha que a psicofobia ainda é muito grande no Brasil?

Eu acho que já foi pior. A gente avançou bastante no que diz respeito a discutir saúde mental e tratar, acompanhar e promover a saúde mental no Brasil. A gente tem alguns marcos como a luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica do início do início dos anos 2000, a criação dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) e outras redes de referência de atendimento de saúde mental, em 2010. Entretanto, desde o governo Temer acima de tudo, a gente observa um sucateamento da estrutura de segurança mental, no Brasil, o que tem se acelerado no governo Bolsonaro. Eu vejo, com muita preocupação, a ascensão da defesa das chamadas comunidades terapêuticas de base religiosa que pode, de certa maneira, representar uma instrumentalização religiosa dogmática e doutrinária do atendimento psiquiátrico no Brasil. Eu acho isso extremamente complicado, principalmente, quando a gente leva em consideração a discussão sobre dependência química e as doenças mentais ligadas a ela. No Brasil, a gente vê, acima de tudo, um abandono do atendimento da população em situação de rua que, com muita frequência, é alvo de doenças mentais e que é uma população que tem crescido no Brasil, nos últimos, anos devido à crise sócio-política, econômica e, agora, sanitária.

Os temas das redações do Enem, em sua maioria, são relacionados às minorias. Este ano foi assim. É estranho que, com um governo que odeia minorias, o tema continue tendo esse viés? Você acredita em mudanças em relação a isso no futuro?

Bom, eu não posso afirmar categoricamente que este governo odeie minorias, mas o que a gente observa e um tratamento, com uma certa frequência, negligente em relação a algumas minorias. Sim, o Enem tem o histórico de abordagem das minorias, já tivemos o tema do racismo, da intolerância religiosa, da violência contra a mulher. O Enem de 2009, que foi vazado e cancelado, originalmente era sobre a valorização do idoso no Brasil. Então, existe um histórico de abordagem das minorias, o que eu acho extremamente positivo, porque força uma discussão social ampla sobre esses assuntos e talvez leve uma reflexão que não seria muito comum na sociedade brasileira. Eu acho um pouco irônico, para dizer o mínimo, que se fale dessas minorias e de outras minorias em um governo que, frequentemente, afirma que o discurso de defesa das minorias é “mimimi” ou, eventualmente, um vitimismo, haja vista o nosso atual presidente da Fundação Palmares que, com muita frequência, diminui a pauta da população preta e parda no Brasil, ou os indivíduos que defendem a existência de uma muito pouco frequente cristofobia no Brasil. Eu não sei se este atual governo odeie as minorias, mas eu consigo ver que, eventualmente, há uma diminuição da relevância dada governamentalmente a algumas minorias.

Será ironia do destino que o tema escolhido seja esse, já que o presidente propôs criar escolas que separassem os alunos com deficiências e com transtornos globais do desenvolvimento, além de ter vetado o projeto que previa psicólogos nas escolas públicas?

Eu não sei se é uma ironia do destino ou um recado interno dado pelos profissionais que escolheram o tema da prova, mas já não é a primeira vez, dentro do governo Bolsonaro, que o tema de redação expõe alguma falha, digamos assim, do governo. No ano passado, a gente teve democratização do acesso ao cinema no Brasil, sendo que o governo Bolsonaro tinha sido muito alvo de críticas devido ao sucateamento da Ancine e eventualmente algumas opiniões de diminuição e de, até mesmo, de aversão à classe artística brasileira, principalmente, à classe artística ligada ao cinema. Neste ano, a gente observa que existe, de fato, um contraste entre a abordagem da saúde mental e um progressivo sucateamento da rede de segurança na área, no que diz respeito tanto ao Ministério da Saúde quanto ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. E os movimentos de defesa das pessoas com transtornos, doenças e síndromes psiquiátricas e mentais no Brasil fizeram muitas críticas a essa proposta de escolas exclusivas que representariam um desmonte de um caminho inclusivo educacional brasileiro. Algumas das maiores lideranças dessa área se posicionaram de maneira veementemente contrária à criação dessa suposta nova alternativa.

O brasileiro ainda privilegia a saúde física em relação à mental? Na sua opinião, de onde vem essa ideia?

O brasileiro médio obviamente, infelizmente, ainda tem uma visão muito limitada da saúde que é o que a gente chama de modelo biomédico e que, mais contemporaneamente, foi substituído pelo modelo biopsicossocial que é uma orientação da Organização Mundial da Saúde, desde 1948. Então, a gente tem sim uma influência muito limitada dessa visão de saúde – a saúde seria apenas a ausência de doença física – e a própria OMS afirma, já desde a segunda metade do século XX, que saúde é o bem-estar físico, psicológico e social. Além disso, eu acho que existe uma ideia de que saúde mental seria uma frescura ou, eventualmente, a preocupação com a saúde mental seria apenas um privilégio da elite, o que eu acho que talvez reflita uma elitização do atendimento de saúde no Brasil que, voltado às classes menos privilegiadas, se limita a um atendimento técnico e que, nas classes mais privilegiadas, aí sim, eventualmente, há um acesso a um atendimento de saúde.

Vou chamar Eliane Brum para o nosso papo e perguntar se você acha que a nossa sociedade está realmente exausta, cansada e dopada. Por quê?

Eu gostaria de dizer que a Eliane Brum é uma das minhas autoras brasileiras favoritas, em todas as minhas aulas eu tento trazer algum artigo dela e ela foi profundamente importante para mim e para os meus alunos este ano, não apenas a partir do artigo “Exaustos e Correndo e Dopados” (clique aqui para ler), que eu li em sala com os meus candidatos ao Enem 2020, mas Eliane Brum e uma referência de uma profissional posicionada, informada, engajada. Então, Eliane Brum, se você eventualmente for ler esta entrevista, eu te amo! E eu acho que sim, nó estamos todos exaustos e correndo e dopados, porque a gente vive nesta sociedade que internalizou o discurso capitalista do alto rendimento e de que o alto rendimento é a produtividade no mundo laboral. Nós somos limitados e restringidos a corpos que produzem para o sistema capitalista e nós não somos só isso, somos muito mais que isso! E é óbvio, somos seres humanos completos e complexos e isso vai conduzir um adoecimento físico, mental e social. E para, adoecidos como estamos, darmos conta dessas exigências, a gente precisa se dopar, seja com os ansiolíticos, seja com os antidepressivos, seja com as drogas de desempenho. É só a gente pensar, por exemplo que, entre os alunos vestibulandos candidatos aos cursos mais competitivos, como medicina, direito e engenharias é muito comum a automedicação e a utilização, sem a prescrição médica, de remédios que tradicionalmente são limitados a indivíduos que têm deficit de atenção ou transtornos de ansiedade o que é um perigo esse doping acadêmico em voga na contemporaneidade.

Para aquietar os coraçõezinhos dos alunos que fizeram a prova, resumidamente, qual caminho eles poderiam ter tomado para não tangenciar o tema.

Os alunos deveriam se lembrar que a preparação para o Enem e para qualquer prova de vestibular ou qualquer produção de texto deve passar pelo desenvolvimento de uma visão crítica da realidade. A capacidade de enxergar, analisar e propor resoluções ou, pelo menos, formas de atenuar os problemas da realidade brasileira e mundial. E que eles podem contar com meus diversos canais de comunicação, Instagram, Twitter e Youtuber como fonte de informações, habilidades de escritas, repertórios socioculturais e comentários é só procurar por Jana Rabelo no Instagram e no Youtube.

 

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Paloma Chierici

Jornalista, professora e mãe de pet. Ama viajar e a liberdade que isso lhe proporciona. Dá aula de espanhol e português há mais de 1 década. Como jornalista, trabalhou em televisão, em empresas e em revistas.

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